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Mushoku Tensei: Jobless Reincarnation – Volume 24 – Capítulo 7

O Gênio

Primeiro, Cliff apressou-se para os leitos dos enfermos.

— Observar a condição do paciente é o mais básico do básico — disse enquanto examinava cada um deles.

Ele não estava fazendo nada diferente do que a equipe médica já havia feito, o que me preocupou. Usava o Olho do Demônio para observar as pessoas com sintomas severos, conversava com os que sofriam de sintomas medianos e comparava as informações recebidas com a tabela que a equipe médica havia montado.

— Como se eu fosse conversar com um Millis… ackh, ackh!

Alguns dos pacientes pareciam assustados quando viam as vestimentas de Cliff, outros pareciam abertamente hostis. As perseguições mais intensas sofridas pelos Superd vinham da Igreja Millis. Eles se lembravam bem disso.

— Esqueça isso e responda de uma vez. Quando foi a primeira vez que sentiu algo de errado com seu corpo?

Cliff não se preocupava com isso nem um pouco, mesmo que nenhum deles cooperasse. Se fosse comigo, já estaria desesperado. Esse era o Cliff.

— Entendo… — disse Cliff. Depois de checar todos os pacientes, começou a agir como se a ficha tivesse caído, finalmente. Eu tinha toda a certeza que ele ainda não havia descoberto nada. Cliff podia ser um gênio, mas há limites para a compreensão de uma pessoa… eu acho. Ele podia ser um sacerdote, um mago curandeiro e um pesquisador, mas de qualquer forma não era um doutor.

— Agora vou conversar com os médicos na chefia — disse, e foi interrogar a equipe médica. Ele quis saber, dos dois médicos de Asura, sobre como examinaram os pacientes e o que planejavam fazer em seguida.

— Vamos usar magia de desintoxicação em conjunto com alguns remédios, e veremos como as coisas se darão.

— Era demais para os médicos do Reino Asura, huh? — Cliff disse, bufando. Olhamos incrédulos, eu e o médico, para ele. Quanta arrogância…! Talvez a hostilidade dos Superd realmente tenha pisado no seu calo. Será que ele sempre foi assim?

— Se isso fosse o suficiente para determinar uma cura, Rudeus ou Orsted já teriam resolvido tudo muito tempo atrás.

— Então, o que sugere, Mestre Cliff?

— Isso é exatamente o que investigarei agora. — Ele replicou. O médico fez uma careta. Opa, calma aí, Sr. Médico. Se tudo der errado, pode culpá-lo o quanto quiser. Neste momento, vamos apenas nos acalmar.

Seria difícil, no entanto. Ele parecia tão confiável mais cedo, mas era mesmo? Norn também aparentava não ter certeza. Ela nos encarou nervosamente de onde estava cuidando de Ruijerd, do outro lado da sala.

— Muito bem. Rudeus, vamos lá fora — disse Cliff. Deixamos os doutores e saímos do salão.

Cliff parou assim que saímos, para revisar nossos resultados.

— Descobri uma coisa. Conversei com um dos anciões e até mesmo ele nunca havia visto essa doença antes entre a Tribo Superd.

— Nunca? Qual a idade desse ancião?

— Mais de mil anos.

Os Superd realmente viviam por um longo tempo…

— Eles foram infectados depois de migrarem para cá. Minha conclusão é que a causa da doença é a própria terra.

— É possível que o Deus-Homem tenha envenenado a terra?

— Não é isso. Meu olho veria esse tipo de coisa — disse Cliff, batendo levemente na têmpora ao lado do seu tapa-olho. Caminhando ao redor do vilarejo, nossa primeira parada foram os campos de cultivo. Ele tirou seu tapa-olho e andou pela área, examinando cada vegetal crescendo ali. Quebrou alguns para observar seu interior. Abriu um tomate suculento, bem na minha frente.

Se o mundo exterior soubesse que os Superd estavam engajados em agricultura comum, isso poderia melhorar sua reputação um pouco. Afinal, humanos sentem afinidade com criaturas que fazem coisas que nós fazemos.

— Próximo — disse Cliff. Fomos ao matadouro da vila. Haviam algumas manchas de sangue, mas fora isso, estava tudo bem organizado. Alguns dos moradores desmaiaram justo quando abatiam um animal, mas era obviamente perigoso deixar carne fresca ao relento, então foram dadas instruções a Sándor para que fosse tudo descartado fora da vila.

Cliff usou o Olho da Identificação para analisar cuidadosamente uma faca, e alguma coisa semelhante a uma tábua de cortar.

— Entendo… —  Ele disse a si mesmo. — Rudeus, você sabe onde a carne que eles preparam é armazenada?

— Hmm… Por aqui. — Eu não via, mas mostrei a ele o local de suprimentos. Ficava parcialmente subterrâneo e abarrotado de grandes quantidades de carne seca, carne salgada e vegetais não perecíveis. Cliff analisou tudo com o Olho da Identificação.

— Você… Você descobriu alguma coisa? — perguntei.

— Sem pressa. Preciso examinar tudo isso antes. — Deixamos o local de suprimentos, e Cliff começou a checar cada uma das moradias do vilarejo. Entramos, vasculhando cozinhas, quartos e até mesmo suas roupas sobressalentes. Isso era uma grande violação da privacidade. Se eu fizesse a mesma coisa na casa de alguém, todos me evitariam, mas obviamente, Cliff era um herói.

Se aprendi algo vasculhando as casas do Superd, foi o quão vazia era a de Ruijerd. Os outros tinham flores, ou desenhos infantis nos pilares… Seria possível sentir a sua vivacidade, o cheiro da vida cotidiana. Essas roupinhas aqui devem ser de uma criança. Claro, quando os residentes tinham sintomas leves e estavam em casa, pedíamos permissão.

— A Igreja Millis…!

— M-Mãe…

— Tudo bem. Tenha calma, ele é do bem.

Um deles avistou Cliff, trajado de suas roupas de sacerdote, e começou a ameaçá-lo com uma lança, mas isso não nos impediu de conseguir permissão.

— Mentiras! A Igreja Millis só nos viu e já…ah…aggggh…

— Mãe? Mãe?! — A mulher estremeceu, como se estivesse revivendo alguma memória. A filha parecia querer chorar enquanto se agarrava à sua mãe.

Senti o intransponível abismo entre os Superd e a Igreja Millis. Para mim e para Cliff, a perseguição deles era um conto antigo. Para as vítimas neste vilarejo, essas memórias ainda eram frescas.

— Agora, que tipo de comida você normalmente consome? Como a prepara?

Cliff não sentia o clima. Ele repetiu o questionamento, como se não tivesse visto o quão aterrorizadas estavam a mãe e sua trêmula criança.

— Responda-me, rápido. Não temos muito tempo.

Ele continuou perguntando até que responderam.

— Hmm. — Cliff passou por todas as casas do mesmo modo. Não acho que havia encontrado qualquer coisa conclusiva. Foi mais instrutivo quanto à cultura dos Superd do que outra coisa.

— Hmm, Cliff?

— Não há nada com o que se preocupar, Rudeus. Eles não estavam com medo de mim, estavam com medo dessas roupas. Se eu curar a doença vestido assim, isso vai fazê-los mudar de opinião. Não acha?

Isso será tão simples assim? Me perguntei. A garotinha de antes poderia mudar seu pensamento, ao menos. Esperava que isso fosse fácil assim.

— Certo, próximo. — Cliff disse. Fomos em cada localidade da vila. A nascente no centro, o poço, o armazém, o galpão de materiais, e finalmente o lixão nos fundos da vila.

Cliff examinou cada lugar minuciosamente. Sua expressão era grave, enquanto revirava a pilha de dejetos e catava as carnes apodrecidas de animais. Quem sabe o que o Olho da Identificação estava mostrando? Tudo o que eu podia fazer era responder às suas perguntas. Olhamos todo o vilarejo até o sol se pôr totalmente, então voltamos para o salão.

— Então, o que acha, Cliff?

— Tenho algumas ideias.

— É?

— Lise, traga-me a minha bolsa de medicamentos! — Cliff gritou no salão, transformado em um centro médico. Elinalise, que estava cuidando dos enfermos, imediatamente levantou-se e veio correndo. Ela havia pegado a grande bolsa, colocada em um dos cantos do centro médico, e veio.

— Sim, senhor! — Ela disse.

— Obrigado, Lise.

Elinalise parecia feliz. Talvez fosse porque havia bastante tempo que não via Cliff. Seu filho… Ela pode ter deixado em minha casa?

— Escutando, Rudeus? — Cliff disse.  — As infecções seguem um curso definido.

— Oh?

— Dito isso, não sou um médico, então não posso ser mais específico. Os Superd contraíram a doença, primeiramente, quando vieram a esta terra. Por isso examinei os vegetais que cultivam, com o Olho da Identificação.

— Ok, e? — requisitei com afinco.

— Não encontrei nenhuma anormalidade.

O quê…

— Não detectei nada imbuído na água ou na terra.

— Sim. Ao menos podemos confiar na comida.

Logo, a alimentação estava limpa. Esse era o Olho Demoníaco de Kishirika. Ele podia instantaneamente detectar qualquer alimento que pudesse causar uma intoxicação ou algo pior.

— Só que todos eles se mostram assim — disse Cliff, e recitou: — Um tomate bonito e gostoso, entupido de mana altamente concentrada.

Aparentemente, o Olho da Identificação usava linguagem informal.

— Não apenas os vegetais, mas o solo e a água também. Todos estão imbuídos de mana altamente concentrada.

— Isso também já apareceu em Millis, esse “entupido de mana altamente concentrada”. Embora, fosse bem raro, e nunca no solo ou na água.

Mana concentrada, hein? Pensando bem, Aisha disse que o arroz que plantava era nutrido por mim. Possivelmente por causa da mana altamente concentrada.

— O que isso significa?

— Tenho uma pergunta para você. Havia muita agricultura no Continente Demônio?

— Não sei bem como era a vida dos Superd no Continente Demônio, mas dificilmente vi vegetais por lá. Não que não existissem, mas não havia diversidade. Carne era o padrão.

— Como imaginei — disse Cliff. Ele levantou um dedo, e começou a explicar sua tese. — Quando se planta vegetais em solo rico em mana, o produto que você cultiva também será rico em mana. Existem vários tipos diferentes de solo, entretanto. Imagino que o do Continente Demônio seja também rico em mana, mas sem nutrientes. Vegetais não crescerão lá.

“Não vemos esse tipo de enfermidade na Grande Floresta, então essa floresta aqui deve ser especial. O solo é extremamente rico em nutrientes e saturado de mana, assim como a água. O resultado é plantas ricas em mana. O fato de haver por aqui apenas uma espécie de monstro pode ter algo a ver com isso, mas a causa principal não é prioridade no momento.

“O problema é que, sob circunstâncias normais, nada disso deveria ser um problema. Vivemos nossas vidas cotidianas sem pensar a respeito. Se fosse algo relacionado a isso, deveríamos ver casos similares com frequência em diversos lugares. Sob circunstâncias normais, nosso corpo é capaz de expulsar a mana que acaba entrando. Com os Superd, não deve ser diferente.

“O que acontece, no entanto, se continuamente absorver essa mana? Não por dez ou vinte anos, mas um ou dois séculos de ingestão contínua de mana altamente concentrada? E então?

“Apesar da virulência da praga, adultos são a maioria dos infectados. As crianças estão bem. — Neste ponto da explicação, Cliff virou-se para mim.

De fato, havia crianças saudáveis demais para uma praga. Entre os Superd, era difícil dizer quem seriam os mais velhos, mas achei que isso significava que não era um problema imunológico.

— E tenho certeza que nós dois sabemos o que acontece quando a mana não é apropriadamente expelida do corpo.

O que acontece quando a mana não é totalmente expelida… Ele quer dizer, Nanahoshi!

— Então isso é a Síndrome de Esgotamento? — perguntei. Ele pode estar fazendo algo. Os sintomas iniciais pareciam mais um resfriado, daí os pacientes eram geralmente acamados assim que a doença entrava no estágio agudo. Orsted não poderia detectá-la também? Talvez não. A Síndrome de Esgotamento era uma antiga enfermidade, então ele poderia não conhecer uma cura. Poderia nem saber o nome. Certo, se ninguém crucial ficou doente neste ciclo, Orsted de nenhum jeito saberia qualquer coisa sobre. Ele não iria perguntar a Kishirika sobre isso, como eu fiz.

— Mas há várias diferenças — apontei. — Não se passou tempo o suficiente desde que Ruijerd veio a este vilarejo.

— Isso é verdade… — Cliff reconheceu. — Mas o corpo do Rei Abissal Vita estava o possuindo, não? Essa deve ser a causa. Não obstante, isso certamente vale a pena considerar. — Cliff puxou uma caixa de dentro da bolsa. Ela estava cheia de uma variedade de folhas e sementes. Ele tirou uma. Estava ressecada, mas logo a reconheci como Grama Sokas.

— Peguei algumas apenas para quando casos como esse acontecessem — esclareceu.

Cliff veio preparado.

— Também vamos usar isto. — Ele tirou uma fruta vermelha do canto da caixa.

— O que é isso? — perguntei.

— Ela forma a base de um veneno que bloqueia a mana no seu corpo.

— É um… veneno?

— Bom, eu disse veneno, mas seu único efeito é impedir o mago que o ingerir de usar sua magia.

Se eu o tomasse, seria literalmente letal… Deveria mesmo dar aos Superd algo assim?

— De acordo com o Olho da Identificação, era consumida junto com o chá de Sokas há muito tempo atrás. O Olho diz, Melhora o efeito da Grama Sokas e vai muito bem com chá, criando uma prazerosa sensação de envenenamento.

Em outras palavras, Kishirika não via isso como veneno.

— O problema é — continuou Cliff —, não sei o que vai acontecer se eu der isso aos Superd agora. Se minha hipótese estiver correta, isso vai curá-los, mas também poderia ter o efeito oposto.

Eu tinha certeza que funcionaria… Mas se fizesse a praga piorar ainda mais, as pessoas morreriam. Não havia garantias.

Após um momento de silêncio, Cliff disse:

— Bom. Pensar demais não vai ajudar em nada. Vamos tentar. — Cheio de determinação, ele virou-se para o centro médico e bradou:

— Eu tenho um medicamento aqui que pode curar sua doença e gostaria de testar! Alguém está disposto a tomá-lo?

— O quê! Espera! Cliff! — gaguejei.

O centro médico caiu em um silêncio sepulcral. Eles olharam para Cliff, e então para suas roupas. Alguns empalideceram, outros desviaram o olhar.

— Só preciso de um voluntário! — Ele disse. — Não há garantias que isso vá curá-los!

Ele não precisava testar em todos para checar o efeito. Uma pessoa serviria. Ninguém se voluntariou.

— A Igreja Millis não é confiável! — Alguém disse, quebrando o silêncio. Nunca ganharíamos a confiança deles, dessa forma, mas o que deveríamos fazer? Não podíamos enfiar o medicamento em suas gargantas.

Então, alguém levantou a mão.

— Eu vou… tomar… — Ele balbuciou. Sentou-se instavelmente, seu cortante olhar em nós. Ao seu lado, segurando-o, estava Norn.

— Ruijerd! Está acordado?

— Hmm, sim. — Foi Norn quem respondeu. — Ele abriu os olhos agora há pouco, Rudeus… — Mas então várias outras vozes sobrevieram, ofuscando-a.

— Ruijerd, você confiaria em um homem da Igreja Millis?

— Eles nos perseguiram mundo afora depois da guerra! — Os Superd mais jovens pareciam os mais perniciosamente raivosos. Isso pareceu espalhar-se pela equipe médica, que também começou a protestar.

— Você quer administrar nele uma substância totalmente desconhecida? Nunca ouvi falar de qualquer coisa do tipo! — disse um.

— Você ao menos estudou medicina apropriadamente?! — demandou outro. Os temores dos médicos propagaram-se pelo salão enquanto os Superd que haviam ficado em silêncio, até agora, começaram a murmurar.

Um medicamento desconhecido, e como se não fosse o suficiente, trazido por um homem em vestes da Igreja Millis. Todos estavam confusos. Alguns hesitaram ansiosamente, outros estavam abertamente irritados.

— Vocês querem que sejamos extintos?! — Ruijerd rugiu, e o centro médico caiu em silêncio outra vez. Os murmuradores calaram-se, faces pálidas. Os mais inquietos também baixaram o semblante.

Ruijerd começou a tossir violentamente, enquanto Norn batia em suas costas. Quando passou, ele disse suavemente:

— Rudeus trouxe aquele homem aqui, e eu confio em Rudeus. Se vocês tiverem alguma reclamação, guarde-as para depois da minha morte…

O fato de ninguém ter se oposto a esse argumento dizia muito quanto à importância de Ruijerd Superdia naquela vila.

— Ok, então, Ruijerd. Você vai tomar o medicamento. Vou logo adiantando: existe uma chance de que isso piore sua condição. Você pode morrer.

— Tudo bem. Vivi uma boa vida. Posso morrer sem arrependimentos.

E quanto aos meus arrependimentos? Não pela Tribo Superd. Por você, Ruijerd. Vê? Olhe para a expressão que Norn está fazendo. Ela concorda.

Mais uma vez, o salão caiu em silêncio até que outro homem levantou sua mão.

— Se Ruijerd vai tomar isso, eu também vou. — Ele era jovem, com sintomas mais leves em comparação. Na verdade, até onde eu sabia ele era um idoso. — Ruijerd me salvou no Continente Demônio. Eu teria morrido lá. Nada mais me assusta depois daquilo.

Isso abriu um precedente. Mãos levantadas, com mais e mais pessoas dizendo: “Eu também.”

No fim, até o ancião da vila levantou sua mão.

— A Igreja Millis pode não ser confiável, mas Ruijerd é o nosso campeão. O que o nosso campeão decidir, eu seguirei. — Ele virou-se para nós e disse suavemente: — Jovem clérigo, peço desculpas pela minha descortesia mais cedo. Por favor, salve nosso vilarejo.

Cliff deu um aceno, determinado.

Após tomar a fruta vermelha com o Chá de Sokas, Ruijerd e os outros caíram no sono. Pelo menos, não caíram mortos no momento em que tomaram.

Saberíamos os resultados amanhã… aparentemente. Obviamente, eu não esperava que o chá em si resolvesse todos os problemas, mas queria que melhorassem, pelo menos um pouco. No momento, porém, o sol já havia se posto. Decidi que isso seria o dia. Ruijerd não havia me dado permissão para dormir em sua casa, mas era onde eu queria ficar.

— …

Eu podia sentir que Norn queria ficar ao lado da cama de Ruijerd, mas ela não poderia fazer nada enquanto ele dormia, então veio comigo.

Norn e eu estávamos sentados à fogueira. Não conversamos. Havia apenas dois sons: o estalar da madeira a queimar e o borbulhar da água fervente por trás da lareira. Batatas e carne, trazidos pela equipe médica, ferviam. Cliff disse que provavelmente estava tudo bem, mas como pode-se imaginar, eu não estava inclinado a comer algo que poderia estar envenenando todo mundo.

— Rudeus, Ruijerd vai ficar bem, não é? — Norn perguntou repentinamente. Ela deveria estar preocupada. Eu estava preocupado.

— Sim, ele vai.

— Sério?

— Nunca soube de alguma vez em que Cliff fracassou quando decidiu fazer algo. Ele pode não melhorar amanhã, mas vai curá-lo de qualquer forma.

— Ruijerd estará vivo até lá?

— Não se preocupe. Você já deve saber de Ruijerd da Guerra de Laplace. Sobreviveu mesmo estando cercado por mais de mil soldados. Ele não vai morrer em um lugar como este.

Não consegui me forçar a falar mais.

— Estou preocupada… — Norn abraçou seus joelhos e encostou sua face neles. O clima estava pesado.

A sopa precisava cozinhar um pouco mais. Não necessariamente eu deveria aliviar o clima ali ou algo assim, mas sentir-se depressivo não estava ajudando.

Tudo o que restava fazer naquele dia era ir para a cama. Queria descansar um pouco, então podíamos ao menos comer algo e ter uma boa noite de sono.

— A propósito, Norn, a escola está de acordo com isso? — perguntei.

Norn levantou o olhar até que metade de sua face estivesse visível.

— …Eu já me formei — respondeu ela.

— Sobre isso, eu queria… Hmm, sinto muito por não ter estado lá.

Eu perdi isso. Ninguém havia me contado. Parando para pensar nisso, Sylphie teve o bebê… É, já era a época das formaturas.

Roxy poderia ter me contado, ao menos… Não, ok, se ela tivesse me lembrado e eu não pudesse ir, isso só pesaria mais em minha consciência.

— Você não precisava ir. Está tudo bem. — Norn disse.

Eu não estava levando a sério. “Era a cerimônia de graduação da Norn! Como poderia perder um evento tão importante? O que eu diria ao Paul lá no céu?”

— Eu não era nem a melhor da classe…

— Mas você era presidente do conselho estudantil. Deve ter feito um discurso, ao menos.

— Eu fiz o discurso de boas-vindas, mas travei no meio. Quase tropecei quando saí do palco. Foi horrível.

Eu poderia imaginar isso. Norn vacilante enquanto falava, internamente entrando em pânico enquanto tentava disfarçar, logo após ao menos fazendo uma boa saída, mas errando o passo e de alguma forma conseguindo manter a caminhada. Eu queria ter visto isso. Norn pareceria enojada. Desejei ter gravado isso em vídeo para colocar no túmulo do Paul como oferenda.

— A propósito, você disse que haveria um tipo de evento antes da formatura, certo? O que você acabou fazendo?

— Você duelou com muitas pessoas no ano em que Cliff se graduou, não é? Copiamos você e fizemos um torneio de combate.

— Um torneio de combate! Isso parece ótimo. Não foi perigoso?

— Tentamos minimizar os riscos o máximo possível. As regras proibiam matar. Emprestamos o círculo mágico de cura nível Santo da escola e havia um mago de cura por perto. Os professores fizeram vários pergaminhos de cura para nós. Também fizemos todos os participantes assinarem um termo de compromisso. Houve feridos, mas sem mortos.

Isso era impressionante. Ao nível dos formandos da Universidade de Magia, ambos os competidores já deveriam ser capazes de usar magias letais. Sem mortos, nessas condições? Sorte também era um fator a se considerar, mas zero mortes graças ao sólido sistema que eles prepararam.

— Queria estar lá também.

— Aquilo se pareceria com brincadeira de criança perto das suas habilidades.

— Mas é um torneio! É sempre empolgante.

Quando era um recluso em minha vida anterior, participei de alguns torneios em games online. Infelizmente, nunca consegui ir muito longe, mas com participantes daquele nível, era sempre legal apenas assistir.

— Aliás, você ganhou um troféu ou algo assim?

— …Nós… Ganhamos — disse Norn, e então estufou as bochechas. — Todos do conselho estudantil contribuíram com dinheiro e ganhamos um buquê, um certificado e um cajado mágico.

O preço de um cajado mágico dependia do seu nível, mas ela fez parecer que gastaram demais com seu limitado orçamento.

— No momento em que Rimi viu que a maioria dos participantes era de garotos, ela anunciou: “O vencedor ganha um beijo apaixonado da Presidente Norn!”

— O quê?!

— Todos estavam tão empolgados. Eu queria recusar, mas não pude.

Mas que porra? Um torneio cujo prêmio seria um beijo da Norn? Não se pode fazer isso. Isso era do mal. Ultrajante. Se estivesse lá, eu colocaria uma máscara, lutaria na competição e chutaria os seus… Esquece. Seria exagero fazer isso.

— E então… Você fez isso?

Houve uma longa pausa.

— Na bochecha.

Bom, não era tão perigoso assim, afinal. Norn ficou vermelha e enterrou a face entre seus joelhos, grunhindo de vergonha. Acho que foi demais para ela. Depois de um tempo, estendeu-se no chão.

— Eles disseram que vou me lembrar do vencedor pelo resto da minha vida… Eu queria poder esquecê-lo.

— É? Qual o nome dele? Me dê o endereço e número de telefone. Um misterioso mago mascarado possivelmente vai sumir com ele da face da terra, junto com todas as suas memórias desde que nasceu.

— O que é telefone?

— Não é nada.

Norn levantou-se, e então sentou de volta no chão. Desta vez, dispôs as pernas para o lado do corpo em vez de abraçar os joelhos.

— De qualquer forma, parece que esse torneio foi um grande sucesso.

— Eu não sei. Acho que fomos bem, mas houve muitas coisas ruins… É como se eu tivesse estragado tudo.

— Isso é o que chamamos de grande sucesso — disse a ela. — Estou feliz.

Norn corou um pouco, mas então acenou.

— Obrigada — respondeu. Sua expressão iluminou-se um pouco.

— Certo, as batatas ficarão prontas logo mais. Quer um pouco, Norn?

— Sim, por favor. — Coloquei um pouco de carne e batatas em uma tigela e dei a ela, depois me servi. Não havia comido nada o dia inteiro. Sentia como se fosse morrer de fome. Norn encarou o conteúdo em sua tigela e começou a comer. Após algum tempo, ela falou novamente:

— Irmão?

— Hm?

— Muito obrigada.

— Sem problemas.

— Mas isso está horrível.

Desculpe por isso.

No dia seguinte, Norn e eu nos levantamos ao amanhecer para ir ao centro médico no salão.

Minha cabeça estava cheia de preocupações quanto a Ruijerd. Graças à nojenta sopa de batatas que enchia minha barriga, pelo menos tive uma boa noite de sono. Mesmo se as coisas não fossem bem, tinha a energia necessária para cuidar dos doentes. Preparado para ver um terrível cenário, abri a porta para o centro médico e engasguei.

Fui recebido por grande movimento. Na noite anterior, o centro parecia um velório, mas agora transbordava de energia. Ok, é uma descrição exagerada. Não havia tanta energia assim, mas todos pareciam muito melhores do que na noite anterior.

— Mestre Rudeus! — Chamou um dos médicos. Ele me viu e veio correndo. — Olhe para eles! Veja como estão melhores!

Estava funcionando. O Chá de Sokas estava funcionando.

— Na última noite, todos que beberam a infusão medicinal repentinamente disseram que precisavam ir ao banheiro. As enfermeiras os levaram para a área externa. Todos os pacientes apresentavam sintomas de diarreia azul clara. Um pouco depois, começaram a recuperar-se rapidamente. Aqueles que eram casos mais extremos ainda não conseguem ficar em pé, mas tenho certeza que se recuperarão logo!

Conversa de merda logo pela manhã… Espera, o que foi aquilo sobre diarreia azul clara?

— Estamos no processo de administrar o medicamento em todos, ajustando a infusão enquanto isso. Uau, nós fomos idiotas de duvidar dele! Digo, isso é coisa de gênio. Cliff Grimor, quebrador de maldições! Deus, não posso perder tempo aqui. Ainda tenho trabalho a fazer. É melhor eu ir! — Depois desse monólogo, o médico correu de volta para os pacientes.

Não lembrava de mencionar qualquer quebra de maldições. Acho que essa era a forma de Cliff referir-se a si mesmo.

De qualquer forma, diarreia azul clara? Isso me lembrava de algo. O que era? Azul claro… Azul claro…

— Rudeus. — Percebi uma grande silhueta parada à minha frente. Um homem vestido em branco, com um capacete preto.

— Oh, Sr. Orsted.

— Viu os excrementos?

— Uh, não ainda.

Orsted abaixou-se um pouco para sussurrar em meu ouvido:

— Eram ramificações mortas do Rei Abissal Vita.

Rei Abissal Vita. Esse nome me provocava um estranho pensamento. E se “e somente se, preste atenção” a praga não fosse Síndrome de Esgotamento?

O Rei Abissal Vita havia espalhado suas ramificações por toda a vila, e nesse processo, ele tinha temporariamente impedido o progresso da doença. Achei que Vita estivesse apenas disfarçando os sintomas da doença para que ela permanecesse indetectável… E se Vita curou a praga, muito tempo atrás? Então usou suas ramificações para adoecer os moradores, apenas para assustá-los. Quando o fez, invocou o remanescente do seu poder para fazer seus ramos manterem o veneno. As frutinhas vermelhas e o Chá de Grama Sokas os digeriu dentro dos intestinos dos pacientes, ou onde quer que estivessem, e os expeliu… Talvez. Digo, tudo isso era apenas uma hipótese.

— Nós simplesmente deveríamos ter sido persistentes, como você disse.

— Como eu disse — respondi.

Bom, tanto faz. Por enquanto, a crise acabou. O Rei Abissal Vita foi derrotado completamente. Era como eu encarava a situação.

— O que Cliff está fazendo?

— Passou a noite inteira observando os pacientes, mas foi dormir ao amanhecer. Ele ficou naquela casa vazia, junto com Elinalise Dragonroad.

Não me diga. Cliff realmente deu tudo de si. Vamos deixá-lo descansar. Bom, ele estava fadado a trabalhar novamente quando acordasse, dessa vez no filho número dois com Elinalise. Ele precisaria de energia.

— Ruijerd Superdia acabou de acordar também — avisou Orsted.

— Sério?

— Sim. Você deveria ir vê-lo.

— Com licença! — Curvei-me, e fui em direção ao centro médico, esgueirando-me para onde Ruijerd foi dormir no dia anterior. Ali estava ele, sentado no leito e em boa aparência, se alimentando.

— Ruijerd! — Norn correu e o abraçou pela cintura no momento em que nos aproximamos. — Que bom… Oh, eu estou tão feliz… — Ela estava chorando. Norn era um bebê chorão. Ruijerd parecia desconcertado, mas limpou a boca, colocou sua tigela de comida de lado e acariciou a cabeça de Norn. Cheguei logo depois, sem dizer nada. Senti como se estivesse chorando um pouco, também.

Após alguns momentos, Ruijerd levantou os olhos e disse:

— Rudeus.

— Ruijerd, você está… Está se sentindo melhor agora?

— Sim. Não posso brandir uma lança ainda, mas estou melhor.

Tudo bem. Que bom… Estou tão feliz… “Eu não estava imitando Norn” era tudo o que eu podia pensar.

— Estou em dívida com você novamente.

— Não se importe com isso. Além do mais, não sabemos se você está completamente curado ainda. Não se deixe levar.

— De fato.

Quando Ruijerd e eu começamos a conversar, Norn soltou-se da cintura de Ruijerd, fungando, cobriu sua face com as mãos e começou a soluçar. Ela estava vermelha até a ponta das orelhas.

— Mas tenho algo a dizer primeiro, Rudeus — disse Ruijerd.

— O que é? — Ele parecia sério de uma maneira que me deixou nervoso. Havia algo mais? A chocante verdade revelada agora, naquele momento? Me preparei.

— Quando estiver totalmente recuperado, vou ajudá-lo.

Eu estava sem palavras. O que era essa sensação que sentia brotando do meu peito? Ruijerd e eu trabalharíamos juntos novamente. Isso era… euforia?

É, eu estava feliz. Simplesmente feliz.

— Obrigado, eu… estou feliz em tê-lo ao meu lado novamente. — Engoli o que quer que estivesse subindo em minha garganta e reprimi as lágrimas formando-se em meus olhos. Estendi uma mão a ele.

— Ficarei feliz em estar ao seu lado. — Ruijerd disse, apertando minha mão. Seu aperto era quente e forte.

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