Estabelecemos turnos para vigia: uma pessoa ficava acordada para alertar as outras duas no caso de algo estranho acontecer. Fui bem específico ao instruir meus companheiros de que, se ouvissem algum rangido, não deveriam investigar, e sim acordar os outros na mesma hora.
Estávamos dormindo onde o residente anterior havia sido assassinado: o quarto na extremidade do segundo andar. A localização podia ter algo a ver com o aparecimento ou não do espírito maligno. Para falar a verdade, não achei que eram bandidos ou coisas parecidas, embora, se fossem isso, seriam dos bons. Eu poderia prendê-los, entregá-los e adicionar a recompensa em dinheiro obtida aos fundos para o nosso casamento. Se fosse só um monstro comum, melhor ainda. Tudo o que precisávamos fazer era localizar e destruir. Melzinho na chupeta.
— Rudeus! Acorde; o barulho!
Aconteceu quando Cliff estava de vigia.
Acordei e pulei de imediato, verificando o horário. Para garantir um sono leve, cada pessoa dormia apenas duas horas de cada vez, usando uma ampulheta para manter o controle. No momento, estava na segunda virada, então eram cerca de duas ou três da manhã. O momento perfeito para o aparecimento de um espírito maligno.
— Zanoba, acorde. — Após dar um comando rápido a Cliff, fui até a porta e apurei a audição.
Kree… kree…
Klak… klak…
Kee… kee…
Ah, merda. Eu realmente ouvi – e bem claramente. Parecia uma cadeira rangendo. Na verdade, quando ouvi por mim mesmo foi meio assustador. Contraí os lábios enquanto ativava o meu Olho da Previsão
— Aahh. — Zanoba esfregou os olhos enquanto soltava um enorme bocejo.
Assim que confirmei que ele estava acordado, coloquei minha mão na maçaneta. Então, lentamente, certificando-me de que não fazia barulho, abri a porta. Olhei para o fim do corredor. Nada. Só para ter certeza, também olhei para o lado oposto. Nada. Então para cima e para baixo. Nada.
Apurei os ouvidos, mas não consegui ouvir nada. O som havia parado.
Zanoba se levantou e ficou atrás de mim.
— O que está achando?
— Não vejo nada na área.
Poderíamos vasculhar a mansão ou esperar que algo estranho aconteça. O proprietário anterior havia ignorado o barulho, pensando que tinha ouvido mal, e depois morreu, então provavelmente não deveríamos imitá-lo.
— Vamos procurar a fonte — decidi.
— De acordo. Iremos usar a mesma formação de antes, presumo? — perguntou Zanoba.
— Sim. Tome cuidado.
— Enquanto você estiver protegendo as minhas costas, Mestre, não tenho nada a temer.
Ele pegou a sua clava. Cliff o seguiu, parecendo nervoso.
— Mestre Cliff, você se lembra do que deveria fazer?
— M-magia divina.
— Isso mesmo. Estou contando com você. — Zanoba seria nosso escudo, Cliff usaria magia divina, e se isso não funcionasse, eu usaria meu Canhão de Pedra. Estávamos prontos. — Zanoba, vamos.
Nossa investigação noturna começou.
Eu já estava familiarizado com a disposição da casa graças à nossa busca diurna, e a investigação transcorreu sem problemas. Primeiro, vasculhamos todo o segundo andar. Nenhuma anormalidade a ser encontrada. Depois disso, descemos para o primeiro andar, sempre cautelosos. Percorremos os cômodos, um por um, verificando cada lugar onde algo pudesse estar escondido, como a lareira e o forno. De novo, nada. Os cômodos estavam todos vazios.
— Mestre, tudo o que resta é o porão.
— Aham.
Descemos os degraus em direção ao porão. Estava escuro. Quando procuramos de dia, não havia nada no local, mas, desta vez, senti algo sinistro.
Eu estava ficando nervoso. Meu coração bateu forte. Respirei fundo, mantendo minha guarda alta no caso de algo nos atacar por trás enquanto descíamos as escadas. Parecia que estávamos descendo para o inferno. Chegamos, por fim, ao porão.
— E então? — perguntei.
— Nada aqui — respondeu Zanoba.
Usei a minha lanterna para iluminar a área. Não havia nada, nem mesmo nos cantos do cômodo. Além disso, o dono anterior com certeza também tinha verificado o porão. Afinal, era o lugar mais suspeito da mansão.
— Vamos voltar para o quarto e nos preparar.
Cautelosamente nos retiramos do porão e voltamos ao segundo andar. Seguimos pelo corredor até o cômodo em que estávamos posicionados.
— Zanoba, existe a chance de que ele possa estar escondido no lugar em que dormimos, então tome cuidado ao abrir a porta.
— Entendido. — Ele apertou a sua clava e gentilmente colocou a outra mão na maçaneta antes de abrir a porta.
— …
Não aconteceu nada.
— Parece que está tudo limpo.
Não havia nada. Sem ataque.
— Uff.
Por enquanto pudemos descansar. Talvez fosse hora de considerar que a criatura só atacava enquanto as pessoas dormiam. Ou enquanto estavam no banheiro. Pensando bem, não havíamos verificado o jardim. Deveria dar uma olhada nisso no dia seguinte.
Foi então que de repente olhei para trás.
E lá estava.
Bem no final do corredor, perto do chão, mas parecia estar rastejando. Só a sua metade superior aparecia no topo da escada. Estava com a cabeça inclinada enquanto olhava em nossa direção. No começo, pensei que poderia inclusive ser humano. Tinha olhos, nariz, boca, mas sem cabelo ou orelhas.
E eu também, de alguma forma, não tive a sensação de que estava vivo.
— …
Sua silhueta pálida e assustadora pairou na escuridão enquanto nos observava. Por alguns segundos, apenas nos encaramos.
— Ah — comecei, tentando dizer algo.
Foi então que se moveu. Elevou o seu corpo e saltou para o segundo andar. Era do tamanho de um humano… mas não era humano. A coisa tinha quatro braços e quatro pernas. Da escuridão de onde viera, brandindo o que parecia ser uma estaca, galopando silenciosamente em quatro pernas enquanto corria a uma velocidade inacreditável, direto para…
— Whoaaah!
Minhas pernas cederam e caí de bunda enquanto me apressava a lançar um Canhão de Pedra. O medo de que eu pudesse destruir minha própria casa aumentou dentro de mim. Hesitei, enfraqueci a força do meu ataque. A bola de terra se espatifou contra o ombro de nosso inimigo, mas tudo o que fez foi forçar a coisa inumana cambalear. Aquilo veio em minha direção com a sua estaca, e usei meu olho demoníaco para tentar evitar, mas…
— Mestre! — Zanoba voou para a minha frente. A criatura desferiu um golpe forte com a sua arma. Mirou direto no coração.
— Zanoba!
Não perfurou. A pele abençoada de Zanoba era dura demais para o ataque da criatura. S-sim! Esse é o meu aluno; sequer um arranhão, pensei.
Ele agarrou o rosto da coisa com ambas as mãos. Todos os oitos membros daquilo se agitaram no ar enquanto sofria uma chuva de socos.
Cliff deu uma espiada para fora do cômodo em que estava para entoar um encantamento.
— Invoco-lhe, Deus que abençoa a terra que nos nutre! Distribua punição divina para aqueles tolos o suficiente para desafiar os caminhos naturais! Exorcize! — A luz branca de seu cajado acertou a figura de quatro pernas… mas não a impediu de se mover. Então não era um espírito?
Nesse caso, estava na hora de usar a minha magia.
— Zanoba, saia do caminho. Vou usar um Canhão de Pedra!
— Por favor, espere, Mestre! — Zanoba não se moveu. Mesmo que a criatura estivesse destruindo as suas roupas, ele não deu qualquer passo atrás. Por quê?
— Basta, mova-se! Vou cuidar disso!
— Por favor, espere! Mestre, eu te imploro! — Zanoba jogou os braços em volta da coisa, quase como se estivesse tentando protegê-la de mim. A coisa continuou resistindo, reduzindo as suas roupas a trapos. Suas costas, agora expostas, pareciam tão frágeis que ninguém acreditaria que ele possuía um poder sobrehumano.
Desse modo passaram alguns segundos. Então, minutos. O inimigo continuou a sua luta violenta, mas seus movimentos foram se tornando gradualmente mais monótonos, até parar.
— Uff. — Assim que Zanoba teve certeza de que os movimentos estavam cessados, tirou suas roupas rasgadas e as usou para amarrar as mãos e pés da coisa inumana. — Mestre, vamos voltar para o quarto.
— Tudo bem…
Cliff ficou parado no meio do cômodo, tremendo de terror.
— N-não tenha a ideia errada! Não é como se eu estivesse fugindo. Só imaginei que acabaria ficando no meio do caminho, já que o corredor é apertado.
— Ah, entendo. Bem pensado.
— N-não é?
Sua desculpa não foi nem remotamente convincente, mas, pensando bem, até eu fiquei com medo. Eu não ia dizer nada.
— Mestre…
— Você me salvou lá atrás, Zanoba. Mas aquilo foi perigoso, sabe. Ao contrário de um certo Rei Demônio, você não é imortal.
— Isso é incrível, Mestre. Aqui, por favor, veja. — Zanoba estava extremamente animado. Ele me ignorou por completo enquanto abaixava nosso atacante contido, que estava fazendo ruídos inesperadamente baixos. Zanoba agarrou uma lanterna para prover iluminação.
— I-isso é… um boneco?
Diante de nós estava um manequim de madeira pintado de branco, todo amassado. A coisa tinha quatro braços e quatro pernas. Apesar da sua forma estranha, era algo definitivamente feito por alguém. Me perguntei por que não tinha ouvido os seus passos, e então soube. Um pano preto feito breu estava enrolado em cada um de seus pés. O que pensei ser uma estaca era apenas um braço quebrado – dois de seus quatro braços estavam quebrados. Tinha um projeto de nariz e boca lamentáveis no rosto, com bolas de vidro no lugar dos olhos. Aqueles olhos frios e insensíveis eram o que eu estava encarando antes.
Para ser sincero, era assustador demais para suportar… e poderia voltar a se mover a qualquer minuto. Cliff tinha a mesma opinião. Ele estava com o cajado pronto, com o olhar cautelosamente fixo no boneco.
— Mestre, esta é uma descoberta incrível! — Zanoba, por outro lado, não conseguia esconder a sua empolgação.
— Zanoba, não importa o quanto você ama bonecos… — comecei a dizer.
— Este se moveu! Um boneco com movimentos!
Quando ele disse isso, percebi que estava correto. O boneco nos atacou.
— Um boneco com movimentos.
Um boneco com movimentos! Um boneco que se movia sozinho. Então… um autômato. Como um robô. Tipo… um servo robô. Oooh! Enquanto essas palavras corriam pela minha mente, o medo que senti sumiu como se nunca tivesse existido.
— Você está certo — falei. — Isso é incrível.
— Você finalmente entendeu?
— Sim. Estou feliz por não termos o destruído. Zanoba, seu julgamento foi perfeito.
— Heh heh. À primeira vista eu soube o que era.
— Eu não esperaria menos. Seu olhar para bonecos já ficou mais apurado do que o meu — falei, oferecendo alguns elogios e sorrindo para o meu pupilo.
Deixando isso de lado… Um boneco com movimentos. Pensando bem, existiam outros objetos inanimados capazes de se mover neste mundo, como armaduras. Este foi esculpido em madeira, mas será que eu também poderia fazer os de pedra se moverem? E se eu pudesse encontrar uma forma de fazer as estatuetas se moverem sozinhas… e se pudesse desenvolver uma substância parecida com silicone para a pele, para ficar como a de humanos…
As possibilidades eram infinitas.
— Zanoba, o que devo fazer? Meu coração está batendo tão forte!
— O meu também. Posso sentir as lágrimas a ponto de escorrer!
Por enquanto, levaríamos o boneco de volta para casa. Então poderíamos pesquisar o mecanismo que permitia os seus movimentos.
— Ei, vocês dois, já chega! — Cliff de repente perdeu a paciência conosco. Olhei para me deparar com ele nos encarando, seu cajado firmemente seguro em suas mãos. — Não é hora para falar sobre esse tipo de coisa!
— Não é hora para falar sobre que “coisa”? — Zanoba agarrou o rosto de Cliff com uma das mãos e o ergueu no ar. Ah, já fazia algum tempo que eu não o via fazendo esse truque.
— Aggghhhhh! — Cliff agarrou o braço de Zanoba, mas este nem se moveu.
— O boneco se moveu! Você não entende o quanto isso é incrível?!
— Ai, ai, ai! Existem monstros assim por aí, igual armaduras que se movem por conta própria!
Monstros. Ouvir isso me fez lembrar do nosso objetivo inicial. O motivo para a nossa presença não era capturar um boneco que se movia; era assegurar a casa. Não que eu não pudesse matar dois coelhos com uma cajadada só.
— Zanoba, por favor, solte-o.
— Grr… mas, Mestre…
— Mestre Cliff tem razão.
Assim que Zanoba o deixou ir, Cliff logo entoou magia de cura para se recuperar. Mas que bebezão.
— Este boneco provavelmente é o “espírito maligno” que estávamos procurando.
— Hrm.
— E não há garantia de que seja o único. Vamos encontrar e capturar quaisquer outros que estejam nas instalações. Enquanto fazemos isso, talvez possamos encontrar algumas informações de como foram feitos.
— Entendido! — Zanoba acenou com a cabeça, finalmente convencido.
— Esta noite não vamos dormir. Precisamos fazer uma busca exaustiva pela casa e descobrir onde este boneco estava escondido.
Foi assim que começou a nossa terceira varredura pela mansão.
Estávamos procurando um lugar grande o suficiente para esconder um boneco de tamanho humano, mas não encontramos nada do tipo em nossa segunda rodada de buscas. Achei que poderia ficar no jardim, já que não havíamos verificado o local, mas essa pista não serviu de nada. As pegadas do boneco estavam claramente impressas na neve, mas não levavam a lugar algum.
Comecei a suspeitar que havia um cômodo escondido na residência. Havia sido claramente projetada para ser toda simétrica, então talvez precisássemos procurar por algo que não fosse simétrico. Com isso em mente, procurei pelo primeiro e segundo andares da casa, buscando anomalias na disposição dos cômodos, mas não encontrei nada. A falta de luz tornava tudo ainda mais difícil.
— Talvez seja melhor conferir de novo amanhã, quando tivermos luz do dia — sugeriu Cliff.
Concordamos. Antes de encerrarmos a noite, entretanto, decidimos levar o boneco para a universidade. Amarramos seus braços e pernas com bastante força e o colocamos no quarto de Zanoba. Com uma iluminação melhor, podíamos dizer que era bastante antigo. Parecia já ter sido branco, mas eu podia ver que a tinta havia começado a descascar, e também possuía várias manchas de mofo.
— Mestre, este é um… boneco novo? — perguntou Julie. Pensei que ela podia estar com medo, mas, em vez disso, parecia apenas curiosa. — Devo… limpar?
Quando Zanoba pegava bonecos aleatórios pelo mercado, ela se encarregava da limpeza de todos. Ele achava que a melhor forma de aumentar o apreço dela por estatuetas era praticar limpando e polindo as mesmas, e parecia que seu método estava funcionando bem.
— Como vamos fazer para voltar a se mover? — perguntou Zanoba.
— Vamos estudar isso depois de lidarmos com a mansão. — Eu entendia a sua impaciência, mas ele precisava se acalmar. No momento, selamos a coisa em uma caixa que fiz com magia de terra. Não queria que atacasse Julie enquanto estivéssemos fora.
Voltamos para a mansão, parando para comprar um monte de lanternas ao longo do caminho. Decidi voltar a vasculhar a lareira, entrando nela para desta vez fazer uma conferência completa.
— Hm, não é isso, hein?
Limpei a fuligem e as teias de aranha ao terminar a minha busca. Então percebi… não havia fuligem no chão. Era quase como se tivesse sido limpo, com pano passado e tudo o mais. Assim que pensei nisso, o pano enrolado em volta dos pés do boneco era preto. Aquilo estava limpando o lugar todas as noites?
Então, depois, conferimos o segundo andar, primeiro andar e o porão, sendo que o porão era definitivamente o lugar mais suspeito. Nos aventuramos e voltamos a descer com nossas lanternas em mãos. Deixei a porta aberta, só para garantir que não ficaríamos sem oxigênio, e alinhei as lanternas para que o espaço ficasse bem iluminado. Se eu fosse um contador de histórias infantis, poderia até dizer “Vejam, aqui está claro como o dia!”.
Havia uma forma escurecida na parede: uma porta escondida que não tínhamos notado no escuro. Quando a casa foi construída, isso provavelmente ficava escondido, mas com o passar do tempo, o desgaste do constante abrir e fechar escureceu a área ao redor das dobradiças. Também havia marcas no chão, por onde a porta abria.
— Bem, vamos entrar! — Cliff alegremente estendeu a mão para abrir a porta. Me preparei para um possível ataque e concentrei meus olhos na porta, mas Cliff então parou.
— Qual é o problema? — perguntei.
— Não sei como abrir.
Conferi por mim mesmo. Ele tinha razão. Não havia maçaneta nem entalhe para ajudar a abrir a porta. E também não parecia ser suposto que fosse algo que devia ser aberto.
— Mestre, devo quebrar? — propôs Zanoba.
Balancei a cabeça. Mesmo que eu fosse renovar a maior parte da casa, não queria danificar nada, caso pudesse evitar. Olhei para as marcas de arranhões pelo chão. Eu não tinha dúvidas de que a porta poderia ser aberta, e que ela se abriria para nós.
— Hm?
Percebi algo de estranho nas marcas. Começavam três tábuas à esquerda, não alinhadas com o desgaste na parede.
Na minha vida anterior, havíamos feito uma viagem escolar a uma antiga aldeia ninja que possuía uma porta secreta. Com essa memória em mente, tentei pressionar a borda esquerda da porta. Soou um rangido, mas a porta não abriu. Era pesada.
— Zanoba, empurre esta parte bem aqui.
— Hrm.
Assim que ele o fez, a porta abriu com um rangido. Então o som que ouvimos à noite foi esse, hein? Havia uma maçaneta pelo lado de dentro, então abri-la por lá parecia ser mais fácil.
— Duvido que tenha alguma armadilha, mas, por favor, mantenham a guarda — falei quando entramos, iluminando a sala com a minha lanterna. Era uma sala apertada com uma única mesa, um pedestal de madeira e nada mais. Havia vários livros e um frasco de tinta sobre a mesa. O tinteiro havia rachado e seu conteúdo havia secado.
Quanto ao pedestal, como deveria descrever? Tinha o formato de um caixão, sua base oca com entalhes que se ajustava, ao tamanho e forma do boneco. Olhando mais de perto, notei um cristal transparente incrustado na madeira, bem onde a cabeça do boneco ficaria. Provavelmente se carregava enquanto ficava deitado – de forma mágica, e não elétrica.
— Cliff pode me dizer algo sobre este pedestal?
Ele balançou a cabeça.
— Não, é a primeira vez que vejo algo assim.
Estendi a mão, nervoso, para tocar. Não achei que fosse tomar um choque nem nada, mas precisava ter certeza de que estava tudo inerte. Quando não houve reação, voltei a minha atenção para um dos livros sobre a mesa. Poderia dizer que ele tinha sido deixado ali por um bom tempo, mas, por sorte, não havia sinais de que os insetos houvessem o infestado. Será que o boneco os exterminava?
Na capa estava um título e um brasão, mas eu não reconhecia o idioma. O interior do livro continuava igual, escrito em uma língua desconhecida, o que significava que devia ser a língua do Deus do Céu, a língua do Deus do Mar ou uma língua tão obscura que eu nunca tinha ouvido falar. Entretanto, tanto o brasão quanto as palavras pareciam familiares. Onde foi que eu vi? Será que foi na biblioteca da universidade?
Enquanto folheava as páginas, me deparei com uma série de esboços. Esboços do corpo humano, esboços de círculos mágicos. Conforme eu folheava, me deparei com um dos bonecos de quatro pernas e quatro braços.
— Zanoba?
— Sim? — Ele, que estava parado na entrada, se aproximou.
— Acho que este é o boneco que encontramos. O que você acha?
— Não consigo ler o texto, mas você deve estar certo — concordou ele.
— Onde? Deixe-me ver — disse Cliff, mais uma vez se intrometendo.
Nós três olhamos para o livro e folheamos as páginas. A encadernação era bem antiga e parecia poder ceder a qualquer momento. Havia setas desenhadas ao lado dos esboços e palavras escritas abaixo delas, deviam ser anotações ou comentários. Encontramos esboços dos braços do boneco, círculos mágicos e mais flechas e anotações. As margens estavam repletas de rabiscos detalhados.
— Julgando só pelos esboços, isso parece com os círculos mágicos usados para encantar implementos mágicos — murmurou Cliff.
— Sério?
— Sim, posso dizer porque tenho pesquisado sobre isso recentemente. O boneco deve ser um instrumento mágico.
— Então é isso.
O anterior dono – não, o primeiro dono desta casa – provavelmente estava pesquisando algo proibido. Meu palpite era de que tinha ordenado que o boneco protegesse a casa, o que parecia ter sido bem-sucedido, já que estava claramente se movendo pela mansão e atacando os intrusos. Então o dono original sumiu. Se ele deixou o seu trabalho incompleto e foi para outro lugar, ou se foi pego, eu não fazia ideia. Considerando que deixou os frutos de seu trabalho para trás, havia boas chances de que tivesse morrido em algum acidente imprevisto.
Quanto ao boneco, provavelmente tinha ficado adormecido no pedestal até que aconteceu algo e o fez acordar. Então começou a limpar e patrulhar a casa, matando todos os intrusos que encontrava. Provavelmente estava programado para voltar ao pedestal e recarregar sempre que possível.
Essa parecia, ao menos, ser a conclusão mais lógica. Entretanto, se patrulhava o jardim, alguém já deveria ter visto… Espera, não, tínhamos quebrado a porta da frente quando chegamos, e era a única porta quebrada do prédio. A programação original do boneco podia ter mandado patrulhar o jardim, mas ele foi forçado a abandonar essa rota por não conseguir abrir as portas, ficando preso dentro da casa. E então quebramos a porta assim que chegamos, permitindo que fizesse as rondas pelo jardim – provavelmente bem na hora que passamos e subimos as escadas, fazendo que nos seguisse.
Só por segurança, voltei a procurar em cada canto da casa e fiquei de olho nela por mais alguns dias. Não apareceram mais sons durante a noite. Assim que tive certeza de que estava seguro, fui à imobiliária para assinar o contrato oficial. Quanto ao espírito maligno, falei que era um monstro diabólico que estava empoleirado em um quarto escondido no porão da casa.
No dia seguinte, mandaria algumas pessoas para começarem a cuidar da limpeza e fazer os reparos. Enquanto isso, decidi comprar apenas a mobília essencial. Talvez fosse a minha parte japonesa falando, mas senti que deveria deixar o resto para que decidisse com Sylphie. Além disso, não poderíamos nos mudar antes do próximo mês, que seria quando as reformas estariam concluídas.
Eu podia até imaginar a emoção no rosto de Sylphie. “Olha, essa é a nossa nova casa!” Eu diria.
“Whoa! Rudy, ela é incrível!”
“E também tem muitos quartos. Então teremos espaço suficiente, independentemente de quantos filhos tivermos!“
“Incrível; você pensou até no nosso futuro juntos! Me possua!“
“Claro, meu amor. Já preparei até a nossa cama.“
“Rudy, me possua!“
Sim, era provável que isso não acontecesse, mas pensar nisso me fez sorrir.
Espera. Ela não ficaria desapontada, não é? Tipo, “Ugh, Rudy, isso foi tudo que você conseguiu?“
Não, Sylphie não era tão egoísta. Eu tinha certeza absoluta de que não era.
De qualquer forma, foi um esforço frutífero. Em apenas alguns dias, coloquei minhas mãos em um lugar novo e agradável, e herdei um dos tesouros que haviam sido deixados lá. Eu tinha quase certeza de que o boneco era um instrumento mágico. Era possível que o protocolo adequado para essas circunstâncias fosse enviar a minha descoberta para a Guilda dos Magos, mas eu ainda não era um membro oficial.
Depois que o processo ficou mais ou menos concluído, decidi mover os materiais de pesquisa que foram deixados no quartinho do porão. Zanoba carregou o pedestal enquanto eu cuidei dos livros e tal. Estaríamos usando-os para investigar aquele boneco.
— Mestre?
Estávamos no caminho de volta para a universidade quando Zanoba me chamou com uma expressão séria no rosto. Ele estava com o enorme pedestal de madeira equilibrado em seu ombro. Era incrivelmente pesado, mas Zanoba não teve problemas para levantá-lo. Só por garantia, o embrulhamos com um pano para que parecesse um caixão, só para o caso de alguém ver.
— Pois não?
— Posso te convencer a deixar a pesquisa do boneco toda para mim?
Encarei o seu olhar. Por trás de seus óculos redondos havia uma expressão de determinação que eu nunca tinha visto antes.
— Minha reserva de mana é deploravelmente pequena e minhas mãos são muito desajeitadas. Estou até mesmo te atrapalhando na estatueta do wyrm vermelho que deveríamos fazer para Julie. Mal fiz qualquer progresso com isso.
Seria fácil garantir que isso não era verdade, mas eu sabia que essa era uma de suas preocupações. Não pude sequer falar. Zanoba continuou:
— Entretanto, sinto que posso fazer pesquisas. Honestamente, olhar para o livro me dá uma ideia do que o autor queria fazer.
Hm. Ele poderia intuir os pensamentos do criador do boneco, já que compartilhavam de uma paixão em comum, hein?
— Dito isso, identificar e traduzir o idioma pode exigir algum tempo. Talvez seja mais rápido se você liderar as pesquisas — disse ele.
Eu não tinha tanta certeza disso. Afinal, não poderia gastar todo o meu tempo pesquisando bonecos. Deixar isso para Zanoba poderia ser mais benéfico. Mas…
— Hipoteticamente falando, o que você faria se aquele boneco enlouquecesse de novo?
— Mesmo se houver um tumulto, eu poderia recuperá-lo sem ferimentos. Você viu que eu consigo, não viu?
Verdade. A ideia de ele se mover à noite era um pouco assustadora, mas provavelmente não aconteceria nada enquanto não pudesse recarregar em seu pedestal. Deixá-lo no quarto de Zanoba seria perigoso, portanto, pedir uma das câmaras de pesquisa da faculdade emprestada poderia ser uma boa ideia. Uma com a porta bem resistente.
Não, espera. Era possível que fosse magia proibida. Talvez fosse melhor não fazermos isso no campus, embora Nanahoshi estivesse fazendo algo semelhante com sua pesquisa sobre círculos mágicos. Eu talvez pudesse pedir para ela falar bem sobre mim, só por garantia. Afinal, ela era membro de rank A da guilda.
— Por favor, Mestre! Quando seu plano estiver completo, não quero que a minha única contribuição seja o dinheiro!
Parecia que Zanoba havia pensado muito nisso. Eu estava um pouco preocupado com sua fixação extrema por estatuetas, mas se era assim que se sentia, eu talvez devesse deixar isso com ele.
— Eu te imploro! Confie esta pesquisa a mim!
Ele parecia ter mal interpretado o meu silêncio com relutância. Então colocou o pedestal de lado e se ajoelhou para mim, ambas as suas mãos abertas enquanto se prostrava na neve.
— Tá bom, já entendi. Só levanta! Vou deixar isso com você.
— Verdade?! — Ele se colocou de pé na mesma hora, havia uma expressão de absoluta alegria em seu rosto. Com certeza mudou da água para o vinho.
— Há uma possibilidade de que você esteja entrando no território de magia proibida — avisei.
— Magia proibida?
— Sim. Por enquanto vamos pedir uma câmara de pesquisa da universidade emprestada, então faça seus trabalhos nela.
— Obrigado…! — Ele rapidamente voltou a levantar o pedestal, errando a ponta do meu nariz por pouco. Passou perto! O que ele planejava fazer se acertasse a minha cabeça sem querer com essa coisa?
— Vocês dois podem parar de chamar a atenção para si mesmos no meio da rua? — resmungou Cliff.
E Zanoba, então, começou sua pesquisa sobre bonecos autômatos e eu coloquei as minhas mãos em uma casa nova. A seguir: renovações!
magia antiga e proibida do jeito que a igreja de millis gosta…kkkkkk
gosta de executar que faz isso