Vamos falar sobre Aisha por um momento.
A garota estava indo bem. Apesar das tragédias que abateram sobre nossa família, ela parecia tão brilhante e enérgica como sempre. Nunca a vi olhando para fora da janela com tristeza, assim como sua mãe às vezes fazia. Ela não mordia o lábio quando olhava para a espada de Paul, igual Norn. Ela cuidava do trabalho doméstico com alegria, como se nada tivesse mudado. Durante o dia, cuidava de suas flores no jardim e em seu quarto; à noite, se dedicava às minhas aulas de magia e se aninhava feliz comigo.
Parecia quase como se estivesse com mais energia do que antes. Provavelmente era a única pessoa menos melancólica em toda a nossa casa.
Às vezes, quase parecia como se não estivesse de luto por Paul. Não pude deixar de me perguntar se ele não significava muito para ela.
Dito isso, Norn não lembrava muito de nosso tempo em Buena Village, então parecia possível que Aisha também não tivesse muitas memórias com Paul ou Zenith. Assim como Norn passou muitos anos na estrada com Paul, Aisha passou a maior parte de sua infância com Lilia.
Considerando tudo, não era justo que eu esperasse que ela ficasse cabisbaixa. Sua alegria pelo retorno seguro de Lilia talvez superasse sua tristeza pela morte de Paul. Assim sendo, provavelmente era melhor.
Afinal, não era como se eu quisesse que minha irmã ficasse deprimida em vez de curtir a vida.
Certo dia, eu não tinha nada em particular para fazer.
Não teria aulas naquele dia, mas Roxy e Sylphie infelizmente tiveram que ir trabalhar. Eu planejava cuidar de Lucie e passar o dia relaxando.
Senti um pouco de culpa por vadiar por aí enquanto minhas duas esposas trabalhavam duro… mas adultos precisam descansar quando podem, certo?
Hmm. Mas não estou ganhando nenhum dinheiro no momento. Está mesmo tudo bem? Considerando que tenho um bebê e tal? Bem… estudar é a melhor maneira de conseguir algum dinheiro, certo? Sim, está tudo bem.
Depois de me despedir de minhas esposas, verifiquei como Lucie estava. Ela ainda estava dormindo, então saí para o jardim, sem qualquer motivo em particular.
Quando nos mudamos para esta casa, não havia nada aqui além de um pedaço de terra estéril e abandonado. Mas, no momento, após poucos anos, foi completamente transformado.
Em primeiro lugar, agora tínhamos três grandes árvores lá nos fundos. Uma delas floresce na primavera, a segunda no verão e a terceira no outono. Não que eu já tivesse as visto florescer.
Quando perguntei a Aisha onde as conseguiu, ela explicou que fez um pedido à Guilda dos Aventureiros que as trouxe da floresta mais próxima.
Transportar árvores adultas parecia um verdadeiro aborrecimento, então perguntei quanto custou. Ela disse que Zanoba ajudou, então só teve que cobrir os custos de alguns guarda-costas.
Em um canto do jardim, havia uma seção de solo separada do resto por divisórias de tijolos. Foi lá que Aisha plantou as sementes de arroz que trouxe comigo. Nenhum de nós sabia preparar um arrozal adequado, então estávamos tentando cultivar o arroz em solo seco. Até o momento, a primeira safra estava brotando bem. Mas era difícil dizer se conseguiríamos algo comestível com isso.
Neste instante, Aisha estava agachada perto daquele pequeno campo. Para minha surpresa, Zenith estava sentado ao seu lado.
— O que vocês duas estão fazendo? — questionei.
— Ah, oi, Rudeus! — disse Aisha, olhando para mim. — Estamos tirando as ervas daninhas do arroz!
Por um segundo, pensei que ela estava brincando, então me aproximei e percebi que era verdade. Aisha estava arrancando ervas daninhas do meio dos talos de arroz e Zenith também ajudava em silêncio.
Pensando nisso, tive algumas vagas memórias de Zenith arrancando ervas daninha em Buena Village. Talvez fosse algo comum do cultivo de plantas, mesmo onde o clima era frio.
— A Senhorita Zenith também queria ajudar!
— …
Algo sobre essa coisa de Senhorita Zenith não me pareceu muito certo.
— Hm, Aisha, se quiser pode chamar a Mãe Zenith só de “Mamãe”, sabia?
— Nah. A Mãe Lilia disse que não posso. Ela sempre diz que devo chamá-la de Senhorita Zenith ou Madame.
Ah, então era mais um dos mandamentos de Lilia. Ela era rigorosa com relação a essas coisas.
Mas, bem, senti que, de qualquer forma, Aisha não pensava em Zenith como uma mãe. Só para registrar, Zenith a tratou como um de seus próprios filhos quando ela era um bebê, mas Aisha obviamente não era capaz de lembrar disso.
Bem, tanto faz. De qualquer forma, não era grande coisa.
— Há quanto tempo a Mãe Zenith está te ajudando assim?
— Na verdade, já faz um tempo. No começo a Mãe Lilia tentou impedi-la, mas ela sempre vem me ajudar quando começo a mexer no jardim. Ela é melhor nisso do que eu!
Zenith também se esforçava muito para manter nosso jardim em Buena Village. Talvez tivesse algo a ver com isso.
Eu, de nenhuma maneira, iria desencorajá-la. Nunca se sabe o que poderia ajudá-la a recuperar suas memórias. De qualquer forma, era legal ver ela e Aisha sentadas assim, lado a lado. Pareciam contentes com a companhia uma da outra. Mesmo não sendo parentes de sangue, acho que Zenith ainda continuava mãe de Aisha.
— Ah, é mesmo. Rudeus, hoje você está livre, certo?
Enquanto eu as observava trabalhando, Aisha se virou para olhar para mim. Sua bochecha estava suja de lama.
— Sim. Vou passar o dia todo em casa.
— Ótimo! Tenho que te mostrar algo. Pode passar no meu quarto depois?
— Claro — falei, me abaixando para limpar seu rosto. Aisha sorriu estupidamente enquanto eu a limpava.
Zenith olhou para ela, nos encarando intensamente.
“Tenho que te mostrar algo. Pode passar no meu quarto depois?”
Uma fala bem sugestiva, tenho certeza que qualquer um concordaria.
Aisha era uma criança muito precoce. Existia a possibilidade de levantar a saia e tentar me mostrar suas partes íntimas ou algo assim.
Bem, pensando melhor, talvez não. Já tomávamos banho juntos regularmente. Não havia nenhuma parte baixa dela que eu já não estivesse acostumado.
Mesmo assim, a garota era tão sem vergonha que eu estava começando a me preocupar com seu futuro. Talvez eu devesse dar algumas lições básicas de educação sexual para ela.
Espera, ela não disse que Lilia já tinha ensinado isso tudo?
Certo… mas e se só tivesse ensinado um monte de besteira? Eu realmente deveria intervir…
Franzindo um pouco a testa enquanto considerava o que era mais adequado a se fazer, entrei no quarto de Aisha.
Ela me disse para passar “depois”, mas não especificou um horário. Então esperar por ela aqui não deveria ser problema.
Não era como se eu só quisesse dar uma olhada no quarto de uma garota ou algo assim. Embora eu talvez estivesse um pouco curioso.
— Bem, parece que ela ao menos mantém o lugar limpo…
O quarto de Aisha estava impressionantemente organizado. Estava tudo em seu devido lugar, e eu não conseguia ver uma única partícula de poeira em lugar algum. Sua cama também estava bem feita.
Aqui e ali, notei alguns ligeiros toques femininos. O brinquedo de pelúcia em sua cama era particularmente notável. Era um garotinho, de uns vinte centímetros de altura, cabelo castanho claro, robe e cajado. Provavelmente era um mago.
Pelo que eu sabia não vendiam brinquedos como esse nesta cidade. Será que ela comprou de um mascate viajante? Acho que nem Zanoba tinha algo assim em sua coleção, e isso significava que devia ser um achado muito raro.
Será que ela mesma tinha feito? Nah, claro que não.
Aisha também tinha alguns vasos de plantas perto da janela – tudo, desde tulipas a aloés e um cactozinho. Tinha mais ou menos uns dez vasos alinhados de vários tamanhos. Comparado com o quarto de Norn, o lugar parecia um pouco mais com o que se esperaria de um quarto de uma garota.
Vagando até um canto, abri o armário de Aisha e dei uma olhada. Havia três trajes de criada completos. Foi nítido perceber que todos estavam bem usados, com alguns remendos aqui e ali. Pareciam mais as roupas de uma criada veterana do que as de uma criança de onze anos. Aisha estava crescendo bem rápido, então logo deveriam ficar pequenos para ela. A menos que Lilia pudesse modificá-los de alguma forma.
Voltando a olhar ao redor, percebi uma única e bela roupa feminina pendurada do outro lado do armário. Tinha um monte de babados e tal. Será que estava guardando para uma ocasião especial?
Com alguma sorte, não seria isso que ela queria me mostrar. Eu teria que fingir que não vi isso.
Fechando o armário, abri a gaveta embaixo dele.
Um dos lados estava cheio de calcinhas cuidadosamente dobradas. Para qualquer garoto apaixonado por ela, seria um verdadeiro tesouro.
Ao lado das calcinhas estavam várias camisas… e assim que olhei mais de perto, também vi alguns sutiãs. Minha irmãzinha era bem desenvolvida para sua idade, já sendo capaz de equipar uma “armadura torácica”. Ainda assim, no momento, devia ter o equivalente ao tamanho P. O Sábio Velho Eremita já a classificava como uma joia rara em formação, mas ainda era cedo demais.
Enquanto eu continuava contemplando as roupas da minha irmã, uma pequena batida por trás fez meu coração dar um salto. Ativando meu Olho Demoníaco da Previsão, canalizei mana em minhas mãos e girei os calcanhares, certificando-me de fechar a gaveta atrás de mim.
— Quem está aí? — chamei, apontando meus dedos em direção à porta.
Não havia nada lá. Ninguém que eu pudesse ver.
Aisha e Zenith ainda deviam estar ocupadas com o jardim, e Lilia devia estar ocupada preparando o almoço.
Então era nosso tatu de estimação? Não, ele se juntou a Roxy quando ela foi para a Universidade. Provavelmente estava tirando uma soneca por algum estábulo de lá.
Matsukaze, o cavalo que comprei antes de ir para Begaritt, estava alojado em um estábulo na cidade. Às vezes eu ia até lá para verificá-lo, mas duvidava que ele poderia chegar em casa sozinho.
Sobrou apenas Lucie, e ela ainda nem engatinhava.
Então era alguém totalmente inesperado? Um ladrão? Um pervertido querendo roubar o sutiã de uma jovem inocente?
Me abaixei com cuidado até ficar agachado, olhei pelo quarto todo.
Eu não estava vendo ninguém. E também não existiam bons esconderijos.
Ainda assim, algo parecia estranho. Minha intuição aguçada estava me dizendo que eu não estava sozinho.
Seria um inimigo invisível? Será que era alguém com um implemento mágico que fornecia uma camuflagem perfeita? Nesse caso, o efeito teria que passar mais cedo ou mais tarde.
— Acho que então teremos que ver quem pisca primeiro… — murmurei baixinho.
Se fosse apenas o ranger da casa ou algo assim. Eu me sentiria um verdadeiro idiota.
Não… definitivamente há algo de errado. Eu posso sentir.
Olhe mais de perto, Rudeus. O que mudou aqui? O que está fora do lugar?
O brinquedo de pelúcia…? Não, não é isso.
A porta continua fechada. A cama ainda está feita. O teto está impecável como sempre.
Então sobram… os vasos de plantas. Sim. Existem mais deles do que antes?
Acho que não. Mas sinto que aqui está ficando mais quente…
— …
Enquanto eu olhava para as plantas, tentando encontrar algo fora do comum, o sol emergiu de trás de uma nuvem. Um raio de luz entrou pela janela de Aisha.
Thump! Thump!
— Gaaaah!
A planta do vaso menor reagiu instantaneamente. Ela estava se contorcendo toda, tentando obter mais do raio de sol para si, torcendo suas folhas em direção à janela.
A cada movimento, o vaso batia levemente no parapeito da janela de madeira.
Esse som foi o mesmo que eu ouvi alguns momentos atrás.
— O que diabos é essa coisa?
Dei uma cutucada cautelosa na planta, e ela estremeceu com algo parecido com surpresa. Um momento depois, porém, se inclinou para se esfregar no meu dedo e começou a lentamente se enrolar nele, como um broto.
Um pouco surpreso, afastei meu dedo. A planta prontamente voltou a se banhar ao sol.
— Uma planta se movendo…?
Que esquisito. Espero que ela não comece a dançar e cantar pelo quarto ou algo assim.
— …
Pensando seriamente, porém, eu tinha alguma ideia do que essa coisa poderia ser. Afinal, já tinha visto esse tipo muitas vezes.
Essa coisa era um Ente.
As criaturas conhecidas como Entes podiam ser encontradas em todo o mundo. Pertencem a uma das categorias de monstros mais comuns e conhecidos. Nesse sentido, poderia compará-los aos slimes de Dragon Quest.
Eu já tinha viajado bastante para a minha idade, inclusive pelo Continente Demônio, Continente Millis, Continente Central e Continente Begaritt. Infelizmente ainda não tive a chance de conhecer o Continente Divino, mas ainda eram quatro dos cinco principais.
Em cada um dos que eu já tinha visitado, havia algum tipo de Ente.
Os encontraria basicamente em qualquer floresta, e também não eram incomuns nas planícies e desertos. A maioria deles era feita de madeira, mas nem todos pareciam com árvores ambulantes.
Os Entes de Pedra se assemelhavam a batatas grandes e irregulares. Os Entes Cactos pareciam plantas verdes pontiagudas. E também havia muitas outras espécies. Eu tinha ouvido falar que Entes Antigos, por exemplo, eram capazes de usar magia de água.
Ainda assim, eu nunca tinha visto um Ente tão pequeno assim. A coisa tinha cerca de quinze centímetros de altura. Talvez vinte, se contasse suas raízes. Tinha quatro folhas grandes e dois brotos parecidos com gavinhas. Eu não vi flores ou frutos. Talvez fosse uma muda muito jovem. Consequentemente, decidi me referir a ele como Ente Bebê.
Não que isso importasse. Eu só precisava de uma forma de me referir a isso.
Pois bem. Minha principal pergunta no momento era o que nosso Ente Bebê estava fazendo no quarto de Aisha.
— Certo, Aisha. Qual é o problema com essa coisa?
— Hm, bem, é que de repente começou a se mover.
Aisha, que apareceu correndo após meu grito de alarme, não parecia se sentir particularmente culpada pela situação.
— Quando isso aconteceu?
— Logo depois que você voltou de sua viagem, na verdade. O que acha? É bem legal, né?
Ela parecia orgulhosa de seu pequeno… mascote.
— Sim, é mesmo. Por que não me contou sobre isso?
— Eu queria! Mas você tem estado tão ocupado, sabe? Achei que isso poderia esperar um pouco. E agora você descobriu por conta própria!
Aisha, de mau humor, estufou as bochechas. O efeito foi adorável, desnecessário dizer. Agora eu pelo menos sabia o que ela queria me mostrar.
— Bem, de qualquer forma… não acredito que uma daquelas sementes que trouxe era na verdade de um Ente. Quais são as chances disso?
— Huh? Não, não. Tenho certeza de que isso cresceu de algumas sementes de Vatirus que conseguimos em Asura.
— Ah. Sério?
— Sim. Tem folhas e gavinhas, vê? Deve dar belas flores roxas em breve.
Eu reconheci o nome da planta. Suas flores eram o ingrediente principal de um poderoso afrodisíaco e também podem ser usadas para fazer certos perfumes. A cultivavam em certas partes do Reino Asura.
Mas isso não explicava por que esta tinha se transformado em um Ente.
— Mas o que foi que a fez se mover? Foi assim desde o começo?
— Não; costumava ser só uma planta. Começou a se mover quando a coloquei neste vaso.
Aisha explicou que gostava de plantar as flores no jardim externo antes de colocá-las nos vasos. Assim que cresciam o bastante, as colocava de volta no quintal. Ela ainda estava fazendo testes, por isso os vasos e as plantas dentro deles eram bem variadas.
— Hrm.
O vaso em si era algo perfeitamente comum que compramos juntos em uma loja de produtos em geral há algum tempo. Achei bem improvável que fosse um item mágico ou com algum tipo de encantamento.
— Você não fez nada de estranho com isso, fez?
— Não; tratei igual todas as outras. Estou usando o solo que você preparou para mim. Parece ter mais nutrientes do que a terra daqui.
Então isso provavelmente eliminava o solo. Eu sempre fazia coisas perfeitamente normais com minha magia. Não era algo em que colocava muito esforço. Talvez tivesse direcionado um toque de afeto à minha irmãzinha, mas isso não parecia relevante.
— Ah, espera. Acho que às vezes eu regava com a água que sobrava da banheira.
Restos da água da banheira! Hmm. Eu não estava por perto na época, então deveria estar impregnado com o suor de Sylphie e Aisha… talvez com um pouco do suor de Nanahoshi.
Intrigante. Pude ver como isso poderia levar uma planta a desenvolver alguns tentáculos pegajosos.
Certo, Rudeus. Deixe de ser idiota.
— Hmm…
Então o que poderia ter causado isso? Ela plantou uma semente normal e a cultivou normalmente, mas de alguma forma se transformou em um monstro. Era algo que simplesmente… acontecia de vez em quando?
Parecia mais provável que uma semente de Ente tivesse sido acidentalmente misturada com as normais. Entes eram mímicos naturais. Talvez fingiu ser uma Vatirus normal no começo para continuar discreto. Bem, parecia uma teoria coerente.
— Bom, de qualquer forma, acho que devemos matar a coisa — murmurei para mim mesmo. — Talvez eu possa queimar ou algo assim.
— Quêêêêê?! — guinchou Aisha. — Por quê?! Passei esse tempo todo criando esse garotinho! Por que você o queimaria?!
Fiquei um pouco surpreso com a ferocidade de sua oposição. Mas, bem, ela me chamou para mostrar seu Ente. Acho que fazia sentido que não ficasse muito feliz em se livrar dele.
— Aisha, você sabe o que é essa coisa, certo? É um Ente. É um tipo de monstro.
— Mas olha como é pequeno! É adorável!
— Sim, por agora. Mas, quando ficar maior, pode começar a atacar as pessoas. Isso é perigoso.
— Vou treiná-lo! Vou me certificar de que não machucará ninguém!
Ela agora estava desesperadamente agarrada à minha cintura, e seus olhos estavam cheios de lágrimas. Fiquei extremamente tentado a dizer apenas Ah, tudo bem. Mas depois não vou resolver as coisas por você!
Ainda assim, não estávamos falando de um gatinho de rua. Era um monstro.
— Vamos, Rudeus. Não posso ficar com ele? Por favor?
— Esses olhos de cachorrinho pidão não vão funcionar em mim. Precisamos nos livrar disso.
— Mas ele é um bom garoto, é sério! Ele é bom com todos os outros e faz tudo que eu mando!
— Agora você está inventando coisas, Aisha. Como um Ente faria o que você manda? Isso nem tem ouvidos.
— Olha!
Trotando até o Ente Bebê, Aisha estendeu a mão em sua direção. A criaturazinha reagiu deslizando lentamente uma de suas gavinhas ao redor de seu dedo indicador. Sem se desvencilhar de seu “aperto”, ela suavemente esfregou a parte de baixo das suas folhas com a ponta dos dedos, e o Ente Bebê torceu seu corpo de forma que parecia prazerosa.
Era uma visão bem bizarra. A coisa parecia exatamente com uma planta, mas reagia como um animal.
— Certo, solte — disse Aisha.
O Ente desenrolou a gavinha do dedo na mesma hora, deixando-a descansar na palma da mão dela.
— Qual é o dedo mindinho?
Após um momento de hesitação, a gavinha deslizou para seu dedo mindinho.
— Dedo médio.
A gavinha soltou o mindinho e segurou o dedo médio.
— Não solte, mas também segure meu polegar.
Ainda enrolada em torno do dedo médio, a gavinha estendeu-se ainda mais, esticando-se obedientemente em direção ao polegar de Aisha. Não era longa o suficiente para agarrá-lo, mal conseguia tocar a ponta do dedo.
— Certo, solte. — Ela continuou brincando com o Ente desse jeito por algum tempo, então se virou para me encarar. — Viu? Ele ouve o que eu digo, certo?
— É, parece que sim.
Para minha surpresa, era claramente possível se comunicar com essa coisa. E, pelo andar da carruagem, isso era bem apegado à minha irmãzinha.
Eu precisava pensar um pouco melhor.
Entes eram monstros. Isso era um fato. De acordo com minhas experiências, se disfarçavam de árvores ou outras plantas e, depois, lançavam ataques surpresa violentos contra qualquer viajante que passasse.
Ainda assim, eu sabia que existiam algumas espécies de monstros por aí que poderiam ser domesticadas.
Criaturas como o Tu, nosso mascote; e o lagarto em que cavalguei no Continente Demônio não costumavam ser vistos como monstros – as pessoas geralmente os chamavam de “bestas”. Mas não havia nada que os separava intrinsecamente dos monstros, além de seu temperamento.
Este Ente Bebê parecia domesticado o bastante, então eu talvez não precisasse classificá-lo como um monstro.
Sinceramente, não era tão ameaçador. Tu, se quisesse, certamente poderia causar muito mais dano do que isso.
Dito isso… Tu foi domesticado por um domador de bestas profissional.
— Olha, estou um pouco preocupado com a possibilidade de essa coisa te estrangular enquanto dorme, sinceramente.
— Acho que deve ficar tudo bem, Rudeus. Mesmo as Vatirus totalmente crescidas ficam com no máximo o dobro desse tamanho.
— Hmm… tá, mas…
— Se ele machucar alguém, qualquer vez, farei o que você disser! Prometo!
— E se você ficar gravemente ferida na primeira vez que ele te atacar?
— Grr…
Aisha estufou as bochechas, de mau humor por causa disso, mas então pareceu reconsiderar sua estratégia. Abrindo bem os olhos, entrelaçou as mãos na frente do peito e olhou para mim com sua expressão mais doce e inocente.
— Por favorzinho, Rudeus? Pode me dar uma chance?
Onde diabos ela aprendeu a pedir assim? Nada sutil, criança.
Fiquei tentado a insistir no assunto, mas agora existiam assuntos mais urgentes em questão.
Certo, vejamos…
Eu tinha certeza de que nunca ouvi falar de alguém domesticando Entes. Também não sabia muito sobre o comportamento deles, então era difícil dizer qual era a melhor maneira de treinar um. Mais importante ainda, eram monstros perigosos, mesmo que fossem bem fracos. Se errássemos em alguma coisa, mesmo que pouco, tudo poderia ficar fora de controle.
Mas, bem, se realmente ia ficar com no máximo trinta centímetros de altura, então não havia muito que pudesse fazer para nos machucar.
Aisha tinha criado essa coisa desde que era semente, então isso estava acostumado a ter humanos por perto. Esse fato tornava menos provável que atacasse um de nós… presumindo que nesse aspecto fosse como um animal comum.
Hmm…
Claramente irritada com minha indecisão, Aisha começou a fazer beicinho.
— Então tá. Se é assim que você vai se comportar, talvez eu deva usar meu trunfo.
— Seu trunfo?
— Por que não conto a Sylphie e Roxy sobre o seu segredinho?
— Do que você está falando?
Eu estava guardando algum segredo terrível das duas? Não passava nada pela minha mente…
Mas, então, sorrindo arrogantemente, Aisha jogou uma bomba no meu colo.
— Estou falando sobre seu quarto secreto no porão!
— Gah!
Todo mundo tem uma parte de si mesmo que deseja manter em sigilo absoluto. No meu caso, era aquele altar lá embaixo.
Aquele cômodo era um lugar sagrado que eu visitava apenas à noite, oferecendo minhas preces enquanto minha família dormia. Minhas deusas agora estavam fisicamente presentes em minha casa, é verdade; mas isso não tornava o ritual menos significativo para mim.
A fé, em si, tem valor, sabe? O ato de orar nos acalma e centra, ajudando-nos a viver cada dia plenamente. Mantive essa rotina por anos. Era parte da minha vida.
Mas o que aconteceria se meu altar fosse descoberto? O que Sylphie pensaria? O que Roxy diria? Eu queria pensar que ao menos Lilia entenderia. Aisha evidentemente não comentaria sobre o assunto, mas e quanto a Norn? Tive a sensação de que ela reagiria com claro desgosto.
O resultado final provavelmente seria a destruição do meu altar. E, com isso, perderia parte crucial da minha rotina diária.
— A-Aisha, escute. Só estou preocupado com a sua segurança, entendeu? Entes são monstros perigosos, então criar um pode te colocar em risco.
— Não me importo se você é um completo pervertido, Rudeus, mas imagino como Sylphie e Roxy reagirão a isso. Principalmente Roxy… Você tem idolatrado a calcinha dela há muuuuito tempo, não é?
Agh! Que garota implacável! Só estou tentando cuidar dela, e agora está me chantageando!
Droga, o que devo fazer? Qual é a opção menos pior?
Enquanto tentava chegar a uma resposta, a porta do quarto de Aisha de repente foi aberta atrás de nós.
— Hm, acho que acabei de ouvir meu nome. Precisa de alguma coisa?
— Gah!
— Guh!
Aisha e eu nos viramos e encontramos Roxy parada à porta, parecendo um pouco perplexa.
— O-O que você está fazendo aqui, Roxy?! — gaguejei. — Você não acabou de sair?
— Voltei para pegar uma coisa que esqueci. Felizmente, não tenho aula no momento.
Clássico de Roxy! A pequena professora esquecida! Que fofa!
Espera, vamos manter o foco.
— Bem, Roxy, Rudeus e eu estávamos conversando sobre o segre… mmph!
Hmm. Acabei cobrindo a boca da minha irmãzinha no meio da frase. E agora?
— …
— …
Um silêncio constrangedor se seguiu. Os únicos sons eram as batidas suaves do Ente Bebê se contorcendo no parapeito da janela.
Roxy disparou o olhar em direção dele e arregalou os olhos de surpresa.
Certo, talvez eu possa tirar vantagem disso. Ela deve ficar do meu lado nisso, certo? Tenho certeza de que ela sabia bem o quão perigosos são os Entes.
— Isso é um Ente, não é? — perguntou Roxy curiosamente.
— Isso mesmo! — falei. — Aisha acabou de me dizer que quer criar essa coisa como um animal de estimação! Mas Entes são monstros, sabe? Isso pode ser perigoso. Pode me ajudar a convencê-la a se livrar disso?
Aisha agarrou minha mão, que continuava abafando seus gritos de protesto, e tentou afastá-la. Garota tola. Você não pode me vencer em uma competição de força! Pode morder meus dedos se quiser, não vou soltar!
Gah, espera. Não lamba eles! Pare! Isso é golpe baixo!
— Não sei, Rudy. Acho que deve ficar tudo bem.
Hã?! Ela ficou do lado de Aisha?!
— Se criar apropriadamente, Entes são criaturas leais — continuou Roxy. — E este também é bem pequeno. Não deve haver muito perigo envolvido.
— Espera, sério? Você pode domesticá-los?
— Claro. Não parece ser algo muito comum neste continente, mas a tribo Migurd usa Entes para afugentar os pássaros de seus campos.
Eles faziam mesmo isso? Hmm… talvez. Minhas memórias daquela visita já estavam um pouco confusas a esta altura.
Ah, sim! Tinham aquelas coisas que pareciam Plantas Piranhas no meio da plantação. Mas eu não tinha percebido que eram Entes.
De qualquer forma, parecia que Aisha estava certa, então a soltei de minhas garras.
— Sinto muito, Aisha. Parece que eu estava errado sobre isso.
Ela me olhou duvidosamente por um momento, mas por fim sorriu de alívio.
— Tudo bem, Rudeus. Você só estava preocupado comigo, certo?
— Sim, é claro. Você precisa admitir, criar um monstro parece que pode ser perigoso.
— Então tá bom. Acho que então vou ficar quieta.
— Obrigado, Aisha. Lembre-me de te comprar uma boa refeição qualquer hora dessas.
— Vou sim!
Indo para longe de mim, Aisha prontamente correu até Roxy e jogou os braços ao redor dela.
— Obrigada, irmãzona! Eu te amo!
— Uh, de nada, suponho…
Roxy aceitou o abraço, mas parecia tão perplexa quanto sempre.
A partir de então, o Ente Bebê passou a fazer parte da casa como nosso segundo mascote. Naturalmente, estabeleci algumas regras e condições.
Primeiro e mais importante: se alguma vez isso machucasse alguém, nos livraríamos na mesma hora.
Segundo, Aisha precisava treiná-lo para não atacar ninguém.
Terceiro, ela teria que explicar a todos exatamente que tipo de “planta” era.
Quarto, não o deixaria perto de nenhum bebê, só por segurança.
E assim por diante.
Passei essas regras para Aisha em um sermão inflexível, mas ela acenou com a cabeça concordando com tudo, sem nenhuma carranca. A garota mantinha suas promessas, ainda bem, então isso provavelmente daria certo.
A propósito, nomeei nosso amiguinho de “Bet”, escolhendo algumas letras das palavras Ente Bebê.
Esperançosamente, se tornaria um membro confiável e prestativo de nossa família. Eu já o imaginava plantado nos campos de Aisha, defendendo minhas preciosas safras de arroz dos predadores.
Mas como diabos a garota descobriu sobre meu altar secreto…? É realmente necessário manter o olho aberto para essas criadas.
Lendas da Universidade #4: O Chefe domesticou monstros que vivem na casa dele.
esse final que ficou bizarro😥
Essas lendas da universidade kkkk, muito bom
daora esse negócio de “lendas da universidade”, tá sendo massa acompanhar isso
Tô até vendo um compilado já das façanhas do Rudeus aumentado mil vezes pela Linia e Pursena quando elas voltarem pra tribo. Como já conhecessem ele lá, o cara vai ser uma lenda entre o povo fera. Não me admiraria eles voltarem dispostas a enfrentar ele na intenção de casar com ele. Provavelmente no outro futuro que Hitogami viu, uma delas acabaria virando mesmo esposa dele. A própria Sylph admitiu que pensou ser só questão de tempo até ele chegar… Ler mais »
porra mas se ele pegasse as duas ele ia ser obrigado a chefiar a tribo, mto trampo