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Mushoku Tensei: Jobless Reincarnation – Volume 22 – Capítulo 12

Extra: O Macaco e a Juventude Sonhadora

Geese

Estava em um quarto branco. Não havia nada lá além do chão branco, que se estendia ao infinito. Gostava daqui. Me levava de volta àqueles anos no passado, quando eu era apenas um ninguém, transbordando com sonhos e esperanças. Jovem, sem experiência. Burro pra cacete.

Nasci em uma pequena vila no sul do Continente Demônio, livre como um pássaro. Entretanto, por ter um ego grande demais, não considerava que a vila fosse boa o bastante para mim. Fui arrogante o bastante para pensar que tinha nascido para coisas maiores, então fugi.

E consegui obter alguma grande conquista no fim das contas? Não, nadinha. As únicas habilidades que desenvolvi foram coisas que qualquer um saberia fazer: cozinhar, lavar, faxinar… Sim, eu conseguia desenhar um mapa, ou negociar, ou desarmar uma armadilha, mas se você me perguntasse quão bem desempenho essas funções quando comparado a um profissional… Bem, melhor não pensarmos muito sobre isso.

Se eu não fosse tão molenga, talvez até conseguisse acreditar em mim mesmo, mas o fato era que eu ainda não sabia lutar de modo a salvar a minha vida. Meu único propósito era me juntar a caras fortes e incríveis para cobrir seus pontos fracos. Já viu como o cocô do peixe-dourado se mantém preso a ele enquanto nada? Esse era eu. Tudo o que tinha a meu favor eram truques baratos e uma língua afiada.

Enquanto eu estava nesse quarto, perceber que aquele idiota (ou seja, eu) ainda estava de alguma forma vivendo normalmente me deixou bem pra baixo. Mas eu não ia deixar que isso acabasse assim. Eu ia conquistar algo grande. Algo que me fizesse ter orgulho de mim mesmo.

— Oh, sim. Claro, você não pode deixar que isso acabe assim, eu sei exatamente como você se sente, — disse uma figura estranhamente borrada. O Deus-Homem.

Era assustador a falta de presença dele. Ele sempre aparecia quando eu menos esperava. Mas também era uma presença estranhamente reconfortante para mim. Desde quando estava definhando na minha pequena vila, ele vinha para mim em meus sonhos e me dava conselhos. Ele era meu Deus-Homem sagrado.

— Desculpe por te interromper enquanto você está se chafurdando em sentimentalismos, mas eu vou receber uma explicação em algum momento no futuro próximo?

Uma explicação? Pelo quê?

— Estou zangado. Você sabe que apenas coisas ruins acontecerão caso você não pare de evitar as minhas perguntas, certo?

Uou, espera aí! Não fique bravo. Se é uma explicação que você quer, precisa me dizer o que quer saber.

— O que deu na sua cabeça para escrever aquela carta para o Rudeus em Millis? Nós não discutimos que a sua presença lá tinha o único propósito de confirmar como ele luta?

Ahhh, aquilo. Aquela cartinha na qual declarei guerra a ele, para que Rudeus soubesse que sou um discípulo do Deus-Homem. Mas, veja bem, a razão por trás disso é um pouco complicada de ser colocada em palavras.

— Não me importo o quão difícil seja. Você vai explicar. Dependendo do que você disser, pode ser que eu não tenha escolha a não ser libertar minha fúria divina sobre você.

Haha. Sua fúria divina, é? Você já fez isso uma vez. Quase certeza de que não tenho mais muita coisa a perder, sabe.

Ah, que seja. Vou explicar. Pensei muito sobre o porquê fiz aquilo, recentemente, então já tenho uma resposta pronta e na ponta da língua.

— Que admirável da sua parte.

Né?

— Agora vá direto ao ponto.

Certinho. Bem, em primeiro lugar, vivi minha vida até então utilizando de mentiras e enganações para me dar bem. Então desenvolvi um sexto sentido para saber quando a casa está prestes a cair. Mas tem um detalhe nisso; uma data de validade. Só consigo saber quando uma mentira está prestes a ser descoberta.

É mais seguro simplesmente encerrar o que estava fazendo, e então só fugir… Entende? Quando comparado a ficar por lá no momento que a ficha caísse pro Chefe.

O Deus-Homem fez um barulho pensativo.

Mas esse foi o motivo número dois.

— Motivo número dois? Então qual foi o motivo número um?

Foi ser verdadeiro comigo mesmo. Também pode chamar de me comprometer com aquilo. Sabe, no final das contas, não importa como tento me explicar, estou com medo. Acho que se tivesse que lutar contra Rudeus, ao longo da batalha eu iria amarelar. Então deixei uma rota de fuga disponível para mim. Dessa forma, se o plano fosse por água abaixo, teria uma escapatória em dizer que nunca fui um discípulo, e poderia usar minha lábia pra me safar. Se o jogo virasse contra nós, no momento certo, me tornaria um traidor e voltaria ao lado do Chefe.

Se eu estivesse pronto para recuar a qualquer momento, isso seria o suficiente para transformar uma posição desfavorável em favorável, você não acha? Eu acho.

Infelizmente, não posso lutar por nada. Mas de vez em quando, vejo caras mergulhando de cabeça em guerras assim sabendo que pode ser que eles nunca mais voltem. Paul e Ghislaine eram assim, até Elinalise às vezes.

Essa é a única forma de vencer. E não dá pra ganhar se você amarelar porque está com medo de morrer. Um golpe só se torna um último golpe quando, a partir do momento que decidiu entrar nessa, você se entrega e está pronto para morrer. É assim que você derruba inimigos fortes, pelo menos penso assim. Então eu queria me forçar a ser desse jeito também.

— Hm. Então é por isso que você se deu ao trabalho de escrever uma carta para ele?

Basicamente.

— Não posso dizer que entendo… mas não importa. Do meu ponto de vista privilegiado, preciso questionar se sua disposição a morrer impacta a situação como um todo. Isso me preocupa.

Calma lá, olha quem está falando! Quem foi que veio até mim choramingando dizendo: “Não consigo ganhar, me ajudaaa”?

— Sim, e é exatamente por conta disso que estou tão preocupado. Dependo de você.

Uh huh, e assim como você queria, estou convocando cada vez mais pessoas pro seu lado para acabar com Rudeus e Orsted. Estou com você nessa.

— É verdade. Você realmente tem um grau de recrutamento perfeito até agora. Mesmo que seja apenas porque lhe disse os seus pontos fracos. Das suas infâncias, aos seus sonhos, até no momento exato em que devia abordá-los…

Bom, ok, machuca um pouco quando você fala assim… Mas eeei, ainda sou eu quem faz todo o convencimento, no final das contas. Um pouquinho mais de confiança em mim seria bem-vindo.

— É claro que sim. Eu confio em você. Mas estamos ficando sem tempo…

Entendo. É importante que façamos isso no dia certo, sim?

— Sim. Ele é a fraqueza de Rudeus, então não temos escolha senão utilizá-lo. não tenho dúvidas de que funcionará.

Sério? Eu me questiono… Nenhum plano é infalível, sabe como é.

— Sei bem disso. Desde que Orsted se envolveu nisso, todos os meus planos têm saído tortos. Estou farto.

Ainda assim, gostaria de conseguir o máximo de pessoas do nosso lado antes. Especialmente o próximo cara. Ele é grande. Talvez no mesmo nível do primeiro cara, ou ainda mais forte.

— Você acha que consegue?

Qual é, eu arranjo alguns motivos pra ele lutar, deixo ele bravinho, e então me esgueiro rapidamente aprontando as coisas por trás das cenas. Em alguns instantes, você terá mais um aliado confiável nas suas mãos. Como todos os outros, certo?

— Bom, bom. Não sei o que faria sem você.

Heh. Continue me elogiando como se você estivesse sendo sincero.

De qualquer forma, aonde vou amanhã e como chegarei lá? É bom que você tenha algo bom em mente, estou contando com você.

— Sim, claro. Amanhã, quando acordar, viaje em direção ao oeste, então espere sob a sombra de uma grande rocha. Pode dormir lá se quiser. Então, continue a caminho do oeste quando o sol se puser. Você chegará a uma vila no nascer do dia. Vá à única taverna na vila. Se o fizer, é certo que o encontrará… Certo…

Com as palavras do Deus-Homem ecoando pelos meus ouvidos, apaguei.

Meus olhos abriram.

Levantei, estalando meu pescoço e checando se todas as minhas partes estavam funcionando. Sem formigamento nos membros. Sem indigestão. Sem calombos esquisitos na minha pele. Estava com fome, mas pelo menos forte como um touro.

Saí da minha barraca e me alonguei, sentindo minhas costas estalarem enquanto bocejava. Assisti ao sol nascer.

Depois disso, me localizei quanto a qual direção estava encarando. Minha rotina diária. Não consigo começar o dia sem ela.

— Certinho, —  disse.

O deserto se estendia na minha frente, até onde a vista alcançava. Esse era o Continente Begaritt, o segundo lugar mais perigoso do mundo após o Continente Demônio. Esse lugar estava lotado de monstros tão cruéis quanto qualquer outro no Continente Demônio, e o ambiente era implacável.

Fui criado no Continente Demônio e até mesmo eu me pergunto, segundo mais perigoso?

Quero dizer, entendo o porquê. Há menos monstros aqui de modo geral, além de as regiões leste e norte serem até que bastante seguras. Coisas assim te fazem pensar que o Continente Begaritt não é tão mal. Enquanto isso, você pode ir parar no coração de qualquer região no Continente Demônio e estaria repleto de monstros ao seu redor. Não há um único local seguro por lá. Claro, não dá pra negar que ambos os lugares são habitáveis para os verdadeiramente determinados.

— Vamos indo. — Fiz minhas malas e fui ao oeste.

O deserto estava vazio, mas isso era apenas na superfície. Abaixo da areia, havia multidões de minhocas que podiam te engolir de uma vez e escorpiões com veneno em suas caudas que te faria vagarosamente derreter até ficar como uma sopa. Mas espere, tem mais! Também havia os monstros que predavam essas criaturas. Eles eram ainda mais amedrontadores. Precisaria ter as habilidades de um aventureiro de rank A ou superior para passar por eles.

Embora o conhecimento dos monstros locais daria pro gasto. Diferentes tipos de monstros se comportam de formas diferentes. Alguns são territorialistas, outros constroem ninhos, outros ainda perambulam por aí em busca de comida. Alguns dependem da visão, outros na audição… Se você tivesse conhecimentos sobre seus comportamentos, evitá-los enquanto faz sua viagem seria… bem, seria difícil, mas não impossível.

O problema é que pessoas não conseguem vencer os sentidos aguçados de um monstro. Monstros que dependem da visão veem através da maioria das camuflagens em segundos, e monstros que dependem da audição conseguem captar os sons mais inaudíveis. Monstros que esperam em seus ninhos se certificam de que você não verá onde estão escondidos, e monstros que perambulam por aí procurando por alimento tem a energia para te perseguir por dias sem nenhum descanso.

Claro, o que nos faz fortes é como cada um de nós tem algumas das diferentes habilidades necessárias para vencer monstros. Além disso, eu tinha a proteção do Deus-Homem. Podia ir para o oeste sem ser percebido por nenhum monstro. Mamão com açúcar.

Ei, calma aí! Não abaixe sua guarda.

— Não é como se tivesse truques o bastante que me permitissem relaxar, — murmurei para mim mesmo. — Precisa ter bastante cuidado, hein?

Continuei ao norte, sem nunca mudar de direção. Queria comprar um cavalo ou um camelo, mas aparentemente, isso faria com que monstros me perseguissem. Dessa vez iria a pé, ou não chegaria ao meu destino.

Estava sedento. Bebi algumas gotas do meu cantil para reidratar.

O que fazia o Continente Begaritt ainda pior que o Continente Demônio? Sem dúvidas o calor. No Continente Demônio, as temperaturas variavam de acordo com a região, mas não havia nenhum extremo de frio ou calor. Em nenhum lugar nevava como nos Territórios Nortenhos. Calor e frio ambos diminuem sua força e retardam seu juízo.

De vez em quando, colocava uma mão na minha testa e no meu pescoço para me certificar de que não havia nada de errado comigo. Se estivesse muito quente, deveria me preocupar. Estava bem por ora, mas se eu continuasse andando e andando sem parar, me cansaria uma hora ou outra. Demônios são duros na queda, então até mesmo um imbecil como eu dura um pouco mais que um humano. Mas apenas um completo idiota pensaria que isso é o bastante para mantê-lo vivo.

Quero dizer, não é meio óbvio? Nas histórias, até o Imortal Necross Lacross bateu as botas. Não há graça da salvação nem para seres imortais, não é mesmo?

— Bem, aqui estou. —  A pedra gigantesca apareceu perante mim, me deixando completamente alheio aos meus próprios pensamentos. Devia ter uns vinte metros de altura, tão alta que precisava levantar seu pescoço por completo para vê-la. Se destacava demais no meio da imensidão do deserto. Era aí onde pararia para descansar, assim como o Deus-Homem disse.

Sabe de uma coisa? Ficar aqui era moleza. Eu queria rir de tão fácil.

Sentei sob a sombra da enorme pedra por um tempo, sem fazer nada. Caras mais jovens ficam sem sono em situações assim. Se sentem como se precisassem estar fazendo algo, mas às vezes a melhor coisa que se pode fazer é parar, mesmo que seja só pra não ficar desperdiçando energia.

Na sombra da rocha, havia um arbusto de Cerejas de Areia, com seus frutos brilhando como pequenas lanternas. Elas tinham folhas amarelas, pálidas e espinhosas, que se misturavam à areia, bem como flores vermelhas. Pode-se pensar, as vendo, que esses delicados botões não destoavam em um vaso de um palácio real. Entretanto, uma vez que você soubesse a verdade sobre Cerejas de Areia, pensaria de forma bem diferente. Você perceberia o quão aterrorizante esse lugar realmente é.

As folhas e o caule da Cerejeira de Areia estavam cobertos em pequenos espinhos que continham uma poderosa toxina, tão poderosa que até mesmo um antídoto mágico não apresentava nenhum efeito. Cerejas de Areia só apareciam em palácios reais quando alguém queria ver os monarcas mortinhos. Eram um bem raro. Uma única folha desses bebês seria o suficiente para me deixar despreocupado com dinheiro por um bom tempo. Continuando. Graças às Cerejas de Areia, os monstros deixavam esse lugar em paz. Montei minha barraca, tomando cuidado para não encostar no arbusto, e então me deitei. Dormir é estranho. É preciso dormir, mas quando você dorme, não dá pra fazer nada. Normalmente, usaria o tempo para criar uma ou duas engenhocas estúpidas… Mas estava viajando com a menor quantidade de peso que podia, o que era uma pena. Nada além do essencial para a minha sobrevivência.

O que outras pessoas faziam, eu me perguntava. Será que os alfabetizados liam? O que eu fazia, há muito tempo…? Certo, eu criava histórias. Todas as minhas histórias eram sobre o tipo de aventureiro que eu seria.

Hah, aposto que o eu de antigamente estaria muito feliz em saber como estava hoje… Atravessando um deserto no Continente Begaritt, seguindo os conselhos de um Deus, tirando uma soneca em um local seguro cercado por plantas venenosas. Disposto dessa forma, parece bastante legal, não acha? Pode ser uma boa história para contar na taverna.

— Eh? — Observando os arredores, vi um Coelho de Areia bem ao meu lado. Parecia não ter me notado. Ou talvez, comparado aos monstros das redondezas, não me via como uma ameaça válida. Saltitou em direção às plantas, então esticou seu pescoço para dar uma mordida na Cerejeira de Areia.

As Cerejas de Areia eram tão venenosas quanto o resto da planta, mas esse Coelho de Areia as mastigou com felicidade, e sem nenhum tipo de preocupação. Quando tinha finalizado, encheu suas bochechas até que estivessem bem redondas e saiu pulando de novo. As toxinas da Cerejeira de Areia não o afetavam, presumi. Se conseguisse capturá-lo e levá-lo para, por exemplo, Millis, pagariam fortunas por ele (estamos falando aqui de valores bem acima do padrão para um caçador de recompensas).

Espere, é verdade. Sou um demônio. Eles iam bater com os portões na minha cara.

Fiquei pensando um pouco sobre a vida, filosofando sobre como havia sempre mais coisas a descobrir nesse mundo.

Saí no pôr do sol e cheguei à vila após andar por cerca de três horas. O Deus-Homem não me deixou andar enquanto o sol estivesse no céu, e ao longo do caminho, entendi o porquê.

Um grande e velho lagarto estava morto na estrada. Desculpe, chamá-lo assim é um pouco de eufemismo da minha parte, deixe-me tentar de novo. Era um dragão. Uma Naga Amarela. Os dragões do Continente Begaritt geralmente viviam em cavernas abaixo do solo. Eles se moviam pela areia como peixes embaixo d’água, no geral devorando Vermes da Areia próximos à superfície do deserto. Tecnicamente, estavam mais próximos de Wyrms do que de Dragões, mas eram tão perigosos quanto estes. Todos os guerreiros dessas bandas pensavam que eram a mesma coisa.

Sua mandíbula era grande o suficiente para comer três de mim de uma só vez. Seu corpo devia ter uns cem metros de comprimento. Estava lá no meio do deserto, amassado como se algo o tivesse pisoteado. Carniceiros já tinham comido metade dele. Não quero pensar sobre o tipo de monstro que o matou. Saí de lá rapidamente, antes que encontrasse o mesmo destino.

Havia um ponto de referência para a vila: uma rocha que irradiava uma luz azul-esbranquiçada, então era possível se localizar de relativamente longe. Me perguntava se isso não atraía monstros para lá… mas, bem, aparentemente era uma pedra importante para os habitantes da região.

A vila na qual cheguei era pequenininha. Não mais que algumas construções amontoadas. Eram uma mistura de choupanas de terra batida e tendas aqui e ali. Parecia que desapareceria a qualquer momento. Havia uma hospedaria, uma taverna e uma loja voltada à população. Como era de se esperar, nenhum sinal da Guilda dos Aventureiros por aqui. O povo daqui era autossuficiente, vendendo o que conseguiam plantar para o mercador que passasse por essas bandas e comprando só o que realmente precisassem. Ao olhar para esse lugar, me convenci de que nem minha vila era tão pequena assim. Bem, talvez fosse a mesma coisa. Não conseguia me lembrar bem.

Entrei na “taverna”. Tinha também um segundo propósito como o refeitório dos aldeões. Alguns trabalhadores de pele escura e poderosos portes físicos estavam bebendo e se divertindo após terminar o turno da noite. Espadas curvadas, diferentes das que estava acostumado, estavam suspensas de seus cintos. Eram guerreiros do deserto.

Havia diversos idosos e quase nenhum jovem. Sim, essa devia ser a vila dos rumores sobre os guerreiros do deserto. Eles operavam por todo o Continente Begaritt, mas as histórias diziam que quando eles passavam de seus ápices, se aposentavam, iam às suas vilas natal e focavam em cuidar das crianças. Quando entrei, todos me encararam com a mesma expressão de surpresa. Para ser sincero, duvidava que muitos demônios visitassem essas terras.

— Bem-vindo, cliente… se é que devo te chamar assim? —  disse um homem com um rosto rubro.

— Sim, sou definitivamente um cliente, —  Respondi em Língua do Deus Lutador, levantando minhas mãos para mostrar a eles. Quem saberia dizer o que esse gesto significava aqui, mas me parecia uma forma bastante direta de demonstrar que não desejava mal nenhum. Olha, mãe, sem armas.

— Você não parece ser um mercador, —  o homem disse.

— Sim. Na verdade estou procurando por alguém. Ele não é daqui…

O homem grunhiu em confirmação, então fez que sim com a cabeça, satisfeito.

— Quem você procura está lá em cima, ele disse, apontando a janela.

Levantando-se da areia, havia uma enorme rocha como a em que descansei. Ela tinha um tipo de brilho cintilante vindo dela. Pedras mágicas incrustadas nela, talvez? Cerrando meus olhos para ter uma melhor visão, vi que tinha andaimes e uma escada do lado que se estendia até o topo. Parecia um pouco como uma torre de vigia combinada a um farol.

— Entendi. Saúde. — Eu disse, atirando uma moeda de cobre na sua direção pela informação.

— O que é isso? — Ele retrucou.

— Pela informação. Vocês não fazem isso?

— Essa informação não foi digna de pagamento.

— Pense nisso como um sinal de amizade, então, — respondi. — Qual é, você não vê moedas como essas todos os dias, certo? Isso aí é uma moeda de bronze de Millis, sabe.

O homem me encarou firme por um tempo, mas no fim, colocou a moeda em seu bolso e uniu seus punhos em sinal de agradecimento.

Imagino que você esteja se perguntando por que dei a ele uma moeda de Millis em vez de dinheiro dessa região. O fato é que o círculo de teletransporte me atirou aqui no meio do nada, então não tive tempo para trocar minha grana.

Deixei a taverna e fui em direção à pedra palidamente brilhante. Quanto mais perto chegava, melhor podia apreciar seu gigantesco tamanho. Havia andaimes e uma escada, mas a rocha era tão grande que isso não tranquilizava muito. Parecia que poderia desmoronar quando estivesse na metade do caminho.

— Ei, eu realmente preciso escalar essa coisa? — Perguntei. Ninguém estava por perto para me responder. O que significava que a resposta era, Cala a boca e escala.

Contrariando o que estava esperando, a escada era firme e não havia vento. A única coisa que deixava as coisas mais difíceis era a escuridão, mas consegui chegar ao topo sem que meus pés escorregassem.

O topo plano da rocha estava cravejado com adagas que esfaqueavam a pedra, adornadas com pedaços de tecido vermelho. Havia letras místicas escritas na superfície, quase como um círculo mágico. Já tinha visto esse tipo de lugar antes. Se minha intuição estivesse correta, esse era o local no qual os jovens da vila vinham para fazer seus rituais de maioridade.Ou talvez eles pegassem as adagas de pessoas mortas, amarravam um pedaço de tecido ao punho, e as apregoavam aqui em cima. Minha vila tinha um ritual assim também. Não que eu já o tivesse feito.

Olhei para cima.

— Que vista! — exclamei para mim mesmo.

O céu estava repleto de estrelas, as quais continuavam ao longo da curva do céu até o horizonte, sob a luz brilhante da lua, que fazia o deserto cintilar num tom azul.

Não era irônico? Veja, a única razão pela qual queria ser um aventureiro era porque queria ver coisas como essa. Queria ver os horizontes ainda não vistos, que esperavam no fim de uma aventura sem fim. Então, quando de fato me tornei um aventureiro, tudo que vi foi a realidade nua e crua. Ganância. Discriminação. A natureza humana não censurada, no mais alto grau de sordidez. Foi no segundo que me semi-aposentei das aventuras e jurei lealdade ao Deus-Homem que comecei a vir a esses lugares. Não dá pra ser muito mais irônico que isso.

— Então, qual é a sua? Você não está aqui só pela vista, não é? — perguntei, me dirigindo a outra forma mais a frente da rocha.

Ele estava embrulhado em diversas camadas de túnicas rasgadas. Parecia uma grande pilha de farrapos, para ser franco, mas eu estava bastante certo de que era uma pessoa. Pareceria um completo imbecil se realmente não passasse de um monte de roupas velhas, mas e daí? Não perdia nada tentando trocar ideia com uma pilha de pano.

— E se eu estiver? — respondeu. A voz de um homem jovem. Ufa. Não era apenas uma pilha de roupas, então.

— Então eu te diria que não imaginava que um cara importante como você sairia por aí pra ficar olhando as estrelas.

— E se eu dissesse que não é por isso que estou aqui?

— Então acho que eu perguntaria o que você está fazendo aqui.

— Mas eu posso não te responder, estou certo?

—  Uh huh… — concordei.

Qual foi o objetivo em ficar se esquivando…? Mesmo assim, desconsiderando a forma esquisita desse cara conversar, essa devia ser a pessoa que estava procurando.

— A verdade é que, — respondeu — estou procurando pelo Mestre do Continente Begaritt. Um Behemoth.

Aha. Consegui minha resposta.

— O Mestre está sempre viajando pelo continente, então não é possível saber onde ele estará. Dizem que uma vez a cada algumas centenas de anos, ele aparece próximo a essa rocha.

— E essa “uma vez a cada algumas centenas de anos” é hoje? — Perguntei. Ele não respondeu, só vagarosamente se virou para mim. Era um homem jovem, de cabelos negros, com alguns pneuzinhos de gordura ainda pendendo de suas costeletas. O olhar que ele direcionou a mim me dizia que eu estava mais certo que nunca.

Então ele disse:

— Não, não é hoje.

Certo, esquece.

— É apenas uma lenda. Não sei nem se esse “Mestre” existe de verdade.

— Então o que te faz sentar em um lugar como esse?

— Porque pode ser hoje.

Só pessoas muito obsessivas falam assim.

— Veja bem, o Mestre passou por aqui uma vez há muitas centenas de anos atrás, e desde então, não retornou. Então pode muito bem ser hoje, entendeu? Ele não veio ontem ou anteontem. Muitas centenas de anos depois pode ser hoje. Certo?

— Você não está errado. — Seus olhos diziam que ele estava falando bastante sério. Ele realmente pensava que amanhã podia ser o dia em que o Mestre apareceria nesta grande velha rocha.

Por sinal, tenho quase certeza de que a única informação que esse cara sabe do Mestre é que “uma vez a cada algumas centenas de anos ele aparece próximo a essa rocha”. Com apenas isso para sustentar seu desejo, ele veio para cá, no fim do mundo, para passar dias e dias sentado aqui em cima, esperando. Ele era um genuíno maluco.

— O que te fez ir atrás do Mestre assim? Ele matou seus amigos, ou algo do tipo?

— É, basicamente isso, na verdade.

— Mentiroso.

Ele riu.

— Está chamando um estranho de mentiroso? Hahaha! Bem. Acho que era uma mentira mesmo.

Isso é tão engraçado assim? Pensei, enquanto o menino gargalhava. Mas tudo bem, talvez para ele fosse bastante engraçado. Perguntei a ele pelo que desejava lutar contra o Mestre, ele me disse, então o chamei de mentiroso.

Conforme a situação se desenvolveu, sabia exatamente como seus pais estavam. Certamente sua mãe estava morta, mas seu velho estava quase saudável demais. Seu avô estava bastante vigoroso também, se te interessa. Na verdade, sabia um monte de outras coisas além disso. Sabia quando ele ia conseguir ver o Mestre, por que ele queria matá-lo, o que ele faria depois disso, e como as coisas aconteceriam na vida dele após essa história estar finalizada. Tudinho. Mas eu não ia despejar tudo isso em cima dele. Esse garoto era do tipo que ficaria bem bravinho se dissesse tudo isso na cara dele, o que significava que teria que fazer com que ele trouxesse os assuntos antes. É preciso deixar esse tipo de gente de bom humor e conversar por muito tempo até que se acalme.

— Então por que está aqui? —  perguntei.

— Hm. Já viu alguém bom e almejou ser ainda melhor que aquela pessoa?

— Algumas vezes, eu acho.

— Há um grande herói que espero um dia superar, para que então possa me tornar o maior herói que já viveu.

— O quê? E caçar o Mestre por aí no meio do nada é o ritual que te tornará esse super incrível herói?

— Não, não é isso. Quero superar esse grande herói, sabe? Mas aí que vem o problema: como vou superá-lo… entende?

— Não é só ter um duelo com esse grande herói e vencê-lo?

— Sim, tem uma certa lógica nisso. Mas não é assim que quero fazer pra mim.

— Não é?

— As pessoas não conseguem se manter no seu ápice para sempre. Batalhas são influenciadas por condições e sorte. Ganhar uma luta não me trará nada de bom se as pessoas pensarem que ganhei pela sorte, ou que acertei em cheio sem querer.

Okaaay…

— Particularmente, jamais colocaria uma vitória nas mãos da sorte ou de um golpe acidental. Mas o resto do mundo não é tão compreensivo. Você só se torna grande quando outras pessoas te consideram grande, nem um segundo antes disso.

— Legal, então como você vai fazer com que as pessoas te considerem grande? — Perguntei.

— Isso é fácil. É só fazer algo que uma pessoa grande faria. Certo?

— É por isso que você está aqui para lutar contra o Mestre?

— Bingo. Vou vencer o Mestre… o maior Behemoth do Continente Begaritt.

Pronto. Esse era seu objetivo. Behemoths eram os maiores seres vivos do Continente Begaritt. Eram criaturas massivas que ofuscaram até mesmo dragões, e atropelaram tudo que estivesse em seu caminho. Era dito que eram invencíveis. E esse garoto aqui dizia ser quem mataria um.

Há muito tempo, o grande herói ao qual ele quer superar matou um também. Aquele conto havia sido passado por gerações e se espalhou pelos quatro cantos do mundo. Junto com seus aliados, o herói vence as adversidades, salva pessoas do sofrimento, e então vai lutar contra o gigante Behemoth e sai vitorioso. Uma história heroica, sabe como é.

Esse rapaz estava querendo fazer o mesmo. Agora, se quiser ser muito implicante quanto a isso: ele estava sozinho, não estava superando nenhuma dificuldade e não havia nenhuma pessoa sofrendo. Ele não tinha nenhuma razão nobre para vir atrás do Behemoth, a não ser que você considere querer superar seu grande herói.

Agora cá estava ele, esperando pelo Behemoth sem ideia de quando ele poderia chegar, no topo de um rocha em uma vila no fim do mundo, no meio do absoluto nada.

— Está certo, então. Faz sentido, já que você quer ser um herói.

Para seduzir esse cabeça-oca com suas aspirações heróicas, tudo de que precisava eram palavras. Ele queria ser o sujeito de uma história heroica? Incrível. Vou fazer o papel do sábio que dá ao herói seu próximo teste. Hora de entrar no personagem.

— Certo, então vou te dizer por que eu estou aqui. — disse.

— Oh? Você não estava apenas de passagem?

— Isso não te pareceu estranho? Não sou um mercador e não tenho um time. O que um insignificante aventureiro estaria fazendo, vindo a um lugar como esse?

— Huh… Então você está me dizendo que…

Na minha melhor voz de profeta, entoei:

— Dirija-se ao raiar do dia com suas costas voltadas ao sol e por conseguinte ande metade de um dia.

Houve um pesado silêncio. Os olhos do garoto estavam brilhando com o indisfarçável interesse na minha repentina profecia. Em vez de responder, ele se virou, posicionou uma mão na rocha e me encarou. Até sorriu.

— Se você ganhar, —  acrescentei, — volte aqui. Te direi algo ainda melhor.

Então me virei para ir embora.

— Espere! — Ele me chamou depois disso. — O que isso significa?

Não me virei de volta para respondê-lo. Não podia sair do personagem. Agora, vamos fazer uma saída rápida…

Ops, é verdade. Estamos no topo de uma rocha gigante. Droga, não posso simplesmente pular.

Agarrei a escada e desci. O garoto não veio atrás de mim, mas conforme descia, pude ver que ele me observava. Havia um olhar em seus olhos que me deixava preocupado.

Minha atuação ficou um pouco dura demais no fim, mas acho que mandei bem. Bem o bastante, assumo.

Acordei na manhã seguinte com um alto estrondo.

Saltando da cama, corri para fora da minha barraca e olhei ao redor. Uma vez que confirmei que não havia nenhum perigo iminente, comecei minha rotina matinal. Tinha uma certa dor de barriga. Posso ter ficado constipado durante a noite, ou talvez a comida local não me caiu muito bem. Me abriguei no banheiro por cerca de uma hora, então fui em direção à fonte do barulho. Sem necessidade de apressar as coisas. Sabia o que estava prestes a acontecer, assim como sabia o que estava acontecendo agora mesmo.

Bocejei enquanto andava, seguindo o som. Cheguei a uma multidão na entrada da vila. Os velhos guerreiros estavam armados, as crianças pareciam ansiosas e todos eles encaravam o horizonte distante.

Me embrenhei na multidão, murmurando:

— Com licença, passando, — até que chegasse a um lugar no qual poderia ver de onde o som vinha.

A cena que prosseguiu poderia ter vindo diretamente de um mito. Primeiro, lá estava a besta gigante. Era a coisa mais esquisita que já tinha visto. Ela tinha pernas demais saindo de seu corpo. Até mesmo dessa distância era colossal. Grande demais para que eu conseguisse conceber seu real tamanho. Devia ser uns quinhentos metros de comprimento, pelo menos. Fazia o dragão de ontem parecer um bebê.

Era um Behemoth, e estava se contorcendo, agonizando. Se revirava e atacava violentamente, provocando genuínas ondas de areia toda vez que rolava. O único motivo pelo qual ainda conseguíamos vê-lo com toda aquela poeira no ar era pelo tamanho colossal que tinha. Se visse um gatinho se revirando como o Behemoth estava, assumiria que estava espantando uma mosca. Isso era diferente. O Behemoth estava coberto em sangue. Além disso, algo estava percorrendo suas costas. Toda vez que se movia, um novo corte aparecia na pele da besta, fazendo jorrar sangue.

Estavam lutando. Alguém estava lutando contra aquele animal gigante.

— Mamãe, — choramingava uma criança assustada, se agarrando à sua mãe. Os velhos guerreiros pareciam mal respirar enquanto assistiam à luta.

A luta se estendeu por um tempo. O monstro agonizante não produzia nenhum som, apenas continuava a se debater. Era impossível não notar o desespero em seus movimentos. Estava lutando pela sua vida.

A batalha acabou logo após o meio-dia, conforme o sol começou a voltar-se para o horizonte. O debater-se do Behemoth tornou-se mais letárgico conforme aproximava-se de sua morte. Mesmo enquanto sangrava, continuava a agonizar onde estava, recusando-se a render-se. Sua insistência não durou muito. De repente, parou de lutar. Se levantou e andou, vagarosamente, como se estivesse tentando sair de lá. Já era tarde demais para isso, mas acho que o Behemoth não tinha percebido ainda.

No final, a criatura esticou seu corpo todo, até ficar totalmente de pé. Se apoiou em quatro de suas pernas… então soltou um suspiro massivo, e toda sua força se esvaiu. Tombou para trás, como se quisesse sentar, então parou de se mover por completo.

No momento em que caiu, todos os guerreiros colocaram seus punhos unidos e se ajoelharam, abaixando suas cabeças ao Behemoth morto. Não copiei seus movimentos, mas só ficar lá de pé me fazia sentir esquisito, então retornei para trás do grupo. Os guerreiros continuaram como estavam. Era como se estivessem esperando por algo.

Por fim, a areia baixou. Conforme a carcaça do Behemoth pôde começar a ser vista, também pôde se ver uma figura se aproximando no horizonte. Ele vestia camada após camada de roupas rasgadas e carregava uma grande espada.

— Um herói, — alguém disse. Um após o outro, outras vozes ecoando a mesma palavra, clamando por sua atenção.

— Herói…

— Herói!

— Herói!

É isso mesmo, nessa vila honrariam a qualquer um que matasse um Behemoth como um herói, como mais forte de todos os guerreiros, assim como o herói de tempos antigos que derrotou um furioso Behemoth e salvou a vila deles da ruína. Os guerreiros do vilarejo se levantaram e se prepararam para recebê-lo na vila.

O Behemoth não estava ameaçando a vila ou nada do tipo dessa vez, mas ninguém se importava. No que diz respeito aos guerreiros, eles se inspirariam em qualquer guerreiro capaz de vencer um Behemoth. Quando o homem nos alcançou, contudo, ignorou os guerreiros ansiosos. Passou através deles. Veio diretamente na minha direção.

— Aquele não era o Mestre — disse.

— É?

— O Mestre é ainda maior que aquilo.

Ooh, esse pensamento é assustador. Então esse era um anão? Você vai acabar bagunçando meu senso de perspectiva.

Ele estava certo. Não era o Mestre. Quando esse cara lutasse contra o Mestre, pelo que ouvi, a batalha iria se arrastar por dez dias, com nosso herói cambaleando na linha entre a vida e a morte.

— Mesmo assim, obrigado. Seus conselhos me permitiram matar um Behemoth.

— Não tem de quê.

— Agora, — ele disse, seu olhar estava se afiando, — qual era a “ainda melhor” história que tinha para mim?

Ele teve a cortesia de tomar interesse pelo que tinha que dizer. Podíamos finalmente ter uma conversa de verdade.

Desculpe, cara. O tempo da profecia se esgotou. Estou um pouco ocupado para me juntar a você enquanto dá uma de herói.

— Sim, sobre isso. Você quer ser um herói, certo, garoto? Você quer ser ainda maior que esse outro grande herói?

— Não “quero”. Eu vou fazer isso.

— Então, cara! Você não acha que está fazendo tudo errado?

— O que quer dizer com “tudo errado”?

— Sabe, rapaz. No momento você está copiando as coisas que esse grande herói fez, certo? Expulsando Dragões e matando Behemoths, coisas do tipo.

— Sim. Se conseguir chegar ao mesmo patamar das coisas que ele fez, ninguém poderá falar nada sobre mim.

— Veja, — respondi, — se pensar sobre, isso não vai te tornar um herói.

— Bem, suponho que não…

Ele assassinou um Behemoth, e nessa vila, qualquer um que matasse um desses era considerado e honrado como um herói. Mas a vila raramente estava em apuros. E a besta não havia feito nenhum mal a eles. Fiquei até com dó de ela ter sido morta. Era difícil valorizar caçadores de monstros porque simplesmente estavam afim de matá-los. Isso não era heróico.

Por isso é que ia mostrar a ele o caminho de se tornar um herói de verdade.

— Já ouviu sobre a Tribo Superd? — perguntei.

— Sim. Uma raça de demônios, não é? Dizem que durante a Guerra de Laplace, os Superd mataram aliados e inimigos.

— Alguns sobreviveram.

— Onde? — Ele demandou.

— Calma aí, amigão. Deixa eu chegar até o fim. Tem um cara aí que é ainda pior que os Superd.

— Alguém… pior?

— Pode apostar. Esse cara é tipo a origem de todos os males do mundo, sabe? Acho que você já ouviu o nome dele.

O garoto não respondeu.

— Número dois dos Sete Grandes Poderes. O Deus Dragão Orsted. — Isso chamou sua atenção. Vestindo um ar de importância, estendi minhas mãos, inclinei minha cabeça e olhei para ele: — Você já ouviu falar dele, imagino?

Já sabia de tudo. Pelo que o garoto estava lutando, quem ele queria superar, e o que esse alguém fez, mas ele não conseguiu. Com isso, era fácil provocá-lo.

— Ele fez dos membros do Clã Superd seus seguidores, e agora está dando abrigo a eles.

— O Deus Dragão não é mau. Ele é um dos heróis que derrotou o Deus Demônio Laplace. Por lógica, ele e o Clã Superd deviam ser inimigos.

— Você está falando do Deus Dragão de sei lá quantas gerações atrás, né? Os tempos mudam, as pessoas emburrecem. Não?

— Bem… acho que sim.

— Mas aí é que você é diferente. Você está tentando superar as gerações passadas. Acho admirável da sua parte.

O garoto ficou mudo. Embora fosse um cara bem tagarela, agora estava calado. Esse era um sinal claro de que ele tinha entendido o que havia dito e estava refletindo sobre.

— Você pode matar o último membro do Clã Superd e derrotar Orsted, — continuei. — Então, será um herói por toda a eternidade. Sem mencionar que seria o número dois dos Sete Grandes Poderes.

Não houve resposta.

— Só ser grande não te faz invencível ou insubstituível. Qualquer um que teve uma trajetória heróica contada sobre si, teve antes alguém que nunca antes tivesse vencido. Sabe por quê? Porque nunca antes teve a oportunidade.

Os olhos do garoto se arregalaram.

— Você está tendo essa oportunidade. A chance de fama muito além de qualquer outra que já tiveram. Pode ser que você nunca tenha essa oportunidade de novo.

Ele estava calado, me observando com atenção.

É, saquei. Você sabe disso ainda melhor que eu. Você se inspirou nele desde que era pequenininho, ouviu todas as histórias sobre ele, contadas pelos seus pais, e então, quando isso não era mais o suficiente, você percorreu o mundo coletando lendas sobre ele. Tudo para que pudesse ser ainda melhor que ele.

Sabe de uma coisa, garoto? Se você vencer Orsted, certamente será.

— Impossível, — ele disse. — Já faz muitos anos, ninguém sabe o paradeiro do Deus da Técnica ou do Deus Dragão ou do Deus Demônio ou do Deus Lutador. Ninguém sabe onde Orsted está.

Ha, pensei que diria isso.

— Isso é verdade. Mas eu sei exatamente onde está o Behemoth.

— Não era o Mestre.

— Ei, o que quer de mim? O Mestre não vai aparecer aqui por mais oitenta anos.

— É sério? Obrigado por me dizer isso. Daqui a oitenta anos, retornarei.

— Bem, daqui a oitenta anos é daqui a oitenta anos… Não quer testar suas habilidades contra Orsted? Ele é considerado o mais forte do mundo. Muito mais forte que o Deus da Técnica (se é que esse cara ainda está vivo). Ele tem destruído a concorrência desde a Guerra de Laplace, e você pode desafiá-lo.

Ele me encarou. Não existia chance desse cara nem olhar pra mim se eu não estivesse trabalhando para o Deus-Homem. Pode ser que tivéssemos cruzado nossos caminhos na Guilda dos Aventureiros e ele teria me ignorado como um punhado de ervas daninhas. Não sou uma pessoa envergonhada, mas eu não teria os culhões de iniciar uma conversa com um cara como ele. É um dos poucos aventureiros de rank SS do mundo, e estava em um outro nível mesmo dentre eles. Seria justo chamá-lo de o melhor dos melhores. Esse era o cara de quem estamos falando. Até eu me inspirava nele. Lá atrás, quando comecei a me aventurar, queria ser como o cara que ele estava tentando superar agora. Um dia, jurei para mim mesmo, eu vou conquistar coisas grandes como ele.

Então veio a realidade e me deu um chute no traseiro. Nunca conquistei algo grandioso. Fui um aventureiro por um bom tempo e vi coisas que qualquer um quereria se gabar quando chegasse em casa. O problema era que nunca fiz nada além de observar. Preparava refeições para os que conquistavam algo pra valer, deixava tudo separado para eles, mas na hora do “vamo ver”, tudo o que fazia era assistir. Era assim com Paul também. Na batalha com a Hidra, nunca fui à linha de frente.

— Certo, — respondeu. — Então onde está Orsted?

— Vou te dizer, mas tem uma condição.

— Eu aceito.

— Epa, calma lá! Não disse do que se trata ainda, disse? Não ponha os pés pelas mãos.

— Um qualquer como você jamais entregaria algo sem colocar condições para isso antes.

— Você não está errado — admiti.

Estava exultante. Esse cara em quem sempre me inspirei desde que era um aventureiro estava conversando comigo como um igual.

— Não é nada impossível, — prossegui. — Têm duas coisas. Por ora, você vai ter que vir pra cá, — entreguei um mapa a ele, — e quando chegar aqui, te direi o que acontecerá em seguida. Só uma observação: se nos esbarrarmos por aí, finja que não me conhece. Tudo isso é extremamente confidencial. Quanto à segunda coisa: tem um cara que meu patrão quer morto. Um seguidor de Orsted, separado do Clã Superd. Ele definitivamente vai tentar te parar caso você chegue perto de Orsted, então, basicamente, quero que você acabe com ele também.

— Seu patrão?

— Você nunca sonhou com ele? Um cara muito misterioso que te dá conselhos? — Perguntei.

— Sim, — murmurou. — Acho que já tive um sonho como esse, há muito tempo… Você segue os conselhos dele?

— Bem, sabe.

O garoto fez uma expressão que dizia que ele certamente não seguiria nenhum conselho de um cara assim e deu de ombros. Mas eu sabia que isso não era verdade, justamente pelo fato de eu estar aqui por conta das ordens do Deus-Homem para convocá-lo. O chefe só escolhe pessoas as quais ele tem certeza. O Deus-Homem é um covarde, sabe; cauteloso demais. Se alguém abrisse o bico nessa altura do campeonato, todo o plano iria por água abaixo.

— Então? O que vai ser? Quero um sim ou um não.

— Sim, claro, — ele disse. Tinha feito sua decisão, na lata. Eu gostava disso.

— Não gosto da ideia de matar inocentes, mas, como dizem, não se faz omelete sem quebrar os ovos.

— “Dizem”, huh? Vou acreditar no que está dizendo. — Particularmente, não gostava da ideia de alguém aceitar uma missão para matar todos aqueles Superd inocentes sem questionar nada, mas ok.

Lembro de quando tinha acabado de começar a me aventurar. De quando quase morri e Ruijerd salvou a minha vida. Sim, certo, só estava seguindo os comandos do Deus-Homem naquela época também. Mas veja bem, no meu coração, gostava de pensar que era um aliado ao Clã Superd. Não tinha nenhum preconceito sujo contra eles, sem dúvidas. Mas vim tão longe. Não há nada que reste para mim que não seja continuar a decair moralmente e me fortalecer mentalmente para o splat final.

— Certo, isso é tudo, — disse. — Se apresse, ok?

— Sim. Vou partir imediatamente, — ele respondeu, começando a andar em seguida.

Os velhos guerreiros do deserto tentaram pará-lo, mas ele não os escutou. Ele não estava preparado de forma alguma para uma jornada, mas andava pelo deserto como se estivesse indo passear em um parque. Esses caras não perdem tempo quando tomam uma decisão.

— Heróis, — murmurei.

Me inspirava nos heróis também, há muito tempo. O ponto é: quando você cresce e percebe seus contemporâneos tentando ser heróis também, percebe o quão frágeis eles são. Ou talvez “jovens” fosse uma palavra melhor… Em especial esse garoto, dentre todos eles, sem dúvidas.

— Certo, ficarei nessa vila hoje e esperarei pela sua próxima mensagem, certo? — disse para o ar. Coçando meu pescoço, voltei para a vila.

No caminho, algo me fez olhar para trás. Vi a figura de um homem desaparecer no deserto. Ele tinha sido fácil de tapear e de manipular, e mesmo assim, ninguém poderia negar suas habilidades. Mas… não conseguia me sentir seguro cercado apenas por gente assim. Não dava pra saber o quão bom seria tudo isso, sabendo que agora está do nosso lado e tal. Mas quem não arrisca, não petisca, sabe como é?

Bem, santo Deus-Homem: o que tem a dizer sobre tudo isso?

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Edson Gabriel
Visitante
Edson Gabriel
3 dias atrás

Será q esse garoto é o deus do norte? Kalman 2

SalamanderD
Membro
Salamander
3 meses atrás

Cara… quantos caras ele já conseguiu recrutar ? Hitogami é roubado demais. O cara consegue ver tudo. Sinto que o Rudeus tá meio atrasado em relação ao Geese… q treta…

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