Arran não encontrou a Snow Cloud em seu quarto, o que não o surpreendeu.
Existiam três lugares onde ela poderia estar, e desses, seu quarto era o menos provável. Como também não a encontrou no armazém de ingredientes, foi rapidamente para os aposentos dos alquimistas, ciente de que ela estaria lá.
A sua suspeita provou ser correcta, já que antes mesmo de entrar nos aposentos dos alquimistas, já conseguia ouvir gritos ao longe.
Uma voz desconhecida gritou: “Têm alguma ideia de como é raro!”
Outra respondeu: “Não me interessa o quão raro é! Eu preciso dele!”
A segunda voz pertencia a Snow Cloud e quando Arran abriu a porta, deparou com ela de frente para um dos alquimistas, uma mulher baixa de meia-idade com cara de livro.
Ambos os rostos encontravam-se vermelhos de raiva, mas ignoraram Arran quando ele entrou, pois a discussão ocupava toda a sua atenção.
“Não posso deixar que todos os meus herboristas corram atrás de um único ingrediente!” A alquimista pareceu estar à beira de um colapso, com a voz a tremer enquanto gritava.
“Pode, e vai”, respondeu Snow Cloud sem rodeios. “O Ancião Naran garantiu a sua total cooperação, e eu vou tê-la.”
“Mas os ingredientes estão acabando!” A voz do alquimista soava agora a desespero. “Se continuar assim, não conseguirei fazer nem mesmo os curativos para as feridas!”
“Então usem os recrutas”, disse Snow Cloud. “Existem milhares deles, não é preciso ter herboristas experientes para colher raiz de flor-de-sangue e folhas de graça-de-santo.”
A alquimista levou um tempinho para responder e, bem antes que respondesse, Snow Cloud aproveitou a oportunidade que teve para interromper a conversa e voltar-se para Arran.
“Então, decidiu sair do seu covil?”, perguntou ela, dirigindo-se a ele. Ele podia notar que ainda haviam alguns traços de vermelho nas bochechas dela, mas a sua voz estava calma.”Tuya me colocou para treinar com os novatos”, ele respondeu.
Snow Cloud retirou-se do alojamento dos alquimistas, aparentemente ansiosa por se livrar da alquimista, e Arran seguiu atrás dela.
“Presumo que descobriu os benefícios da têmpera?” perguntou ela enquanto entravam no corredor.
“Descobri”, disse ele. “E eu preciso de te pedir desculpa por não te ter dado ouvidos. Quando me disseram que aumentaria o meu controle, eu não imaginei que o efeito seria tão grande.”
Em resposta, ela encolheu os ombros. “Eu estive ocupada com outras coisas. O Ancião Naran já tinha um dos ingredientes do qual eu precisava em seu estoque, e enviei seus herbalistas para procurar outro. Se eu tiver um pouco de sorte, posso consegui-lo dentro de algumas semanas.”
“Eles sabem sobre…” Arran começou, falando em voz baixa.
“Espera,” disse a Snow Cloud. “Vamos até ao jardim das ervas. Geralmente fica vazio, assim podemos falar livremente lá”.
Ela conduziu Arran pelo corredores e, pouco tempo depois, entraram na parte de trás do castelo, onde havia um pequeno jardim murado.
Dava para ver por que o jardim costumava estar vazio – pareciam que todas as ervas haviam sido saqueadas há algum tempo, e a única coisa no local era a grama e as ervas daninhas, que cresciam descontroladamente pelos canteiros de terra que antes abrigavam as ervas.
Sentaram-se em um pequeno banco no meio do jardim , mas mesmo que a área pareça estar vazia, Arran ainda assim enviou sua Visão das Sombras. Apenas quando teve a certeza que não havia ninguém por perto é que relaxou.
“Então eles já sabem?”, ele perguntou novamente. “Que estamos à procura de uma cura para o Patriarca?”
“Só o Ancião Naran”, disse Snow Cloud. “Mas ele acha que estou tentando criar uma cura sozinho. Ele não sabe que a receita da minha mãe está comigo. O fato que ele está ajudando é porque ele queria ganhar meu apoio para o Sol Crescente, não por achar que eu tenha alguma chance de sucesso.”
“Não confia nele?”
Ela hesitou em responder, mas quando falou, foi em um tom incerto. “Eu confio no Ancião Naran, só que ele não é o único membro do Sol Nascente. Existem outros que não ficariam muito contentes com a idéia de curar o Vovô.”
Arran franziu o rosto. “Então você acha que seus inimigos estão na fação do Sol Crescente?”
Snow Cloud acenou com a cabeça. “Eu tenho inimigos em todas as facções, se o meu objetivo for divulgado, eu terei mais. Eu ainda não sei quem entre eles agiria contra mim – ou quem é o responsável pelo envenenamento do Avô.”
“Deve ser alguém da fação do Sol Crescente ou da Lua Minguante, certo?”
Arran se lembrava que essas eram as facções que estavam tentando trazer mudanças para o Sexto Vale, sendo que a terceira – a Montanha de Ferro – era formada pelos antigos aliados do Patriarca.
“Não sei”, respondeu Snow Cloud. “Eu ainda era uma criança quando tudo aconteceu. Mas seja quem estiver por trás disso, quanto menos pessoas souberem sobre meus planos, melhor.”
Por alguns minutos, permaneceram sentados em silêncio, Arran analisou a situação e percebeu mais uma vez o quão pouco ele entendia das intrigas dentro do Sexto Vale.
“Você devia ser cauteloso com o Ancião Naran”, disse Snow Cloud eventualmente, com uma expressão pensativa enquanto falava.
Arran a olhou intrigado. “Não acabou de dizer que confiava nele?”
“Eu confio nele no sentido de não me trair,” disse a Snow Cloud. “Mas também sei bem que ele acredita verdadeiramente na causa do Sol Nascente. Ele está tentando me levar para o lado deles, mas se ele acha que você tem valor, ele vai tentar o mesmo com você. “
Imediatamente, Arran entendeu onde ela queria chegar.
“Se eu estiver ligado ao Sol Nascente, as outras facções se tornarão meus inimigos.”
“Exatamente. E não pôde se deixar levar pelo conflito entre as facções. Caso contrário, você se tornará um inimigo bem além da sua força atual.”
“Farei o melhor para não me envolver”, disse Arran, com todas as palavras.
Ele tem consciência desse fato, ele mal sabia pelo que os diferentes lados lutavam, muito menos quais deles estavam certos – ou qual teria a melhor maneira de sair vitorioso. Juntar-se a qualquer um deles seria pura idiotice.
Esta conversa continuou por algum tempo, com Snow Cloud insistindo várias vezes na importância de Arran permanecer fora do conflito, assim como fazendo perguntas sobre o seu Temperamento.
Quando finalmente voltou para o seu quarto, já tinha anoitecido, mas ainda assim passou várias horas no Refinamento Corporal, seguindo-se mais algumas horas estudando o selo do seu Reino da Destruição.
No dia seguinte, assim como nos outros, ele aproveitou todas as manhãs para treinar sua arte de espadachim com os novatos.
Os novatos ficaram felizes em lutar contra ele, loucos por aprender com o que eles achavam ser um mestre espadachim. Mas a verdade é que eles possuíam mais habilidade do que Arran, e enquanto o seu controle permitia que ele os derrotasse, foi ele quem mais aprendeu com as suas trocas.
Depois da Têmpera, o controle que tinha sobre o seu corpo, ficou mais fácil de copiar as técnicas dos seus oponentes. Bastava ver um novato executar uma técnica de espada apenas uma vez para a executar ele próprio, normalmente melhor do que a pessoa de quem a tinha copiado.
Com apenas duas semanas de treino, a sua destreza como espadachim aumentou muito mais que nos anos anteriores, e rapidamente deu por si mesmo a dar conselhos genuínos aos novatos – corrigindo as suas posturas e técnicas, com o conhecimento que adquiriu do seu próprio corpo permitindo-lhe saber como deveriam ser executadas.
Ocasionalmente, Tuya comparecia, às vezes observando o treino e outras vezes dando lições ou dicas.
Ainda que as suas lições tivessem um valor inestimável, Arran aprendeu rapidamente que a ajuda dela tem um preço. Todas as vezes que ela intervinha, tanto ele quanto os outros novatos acabavam ficando um ou dois Cristais de Essência mais pobres, pois a especialista gigante não aparentava ter vergonha de extorquir seus alunos.
Ainda assim, foi um preço que valeu a pena pagar – principalmente para Arran, que possuía uma abundância de Cristais de Essência.
“Onde está o Stone Heart?” ele perguntou a ela um dia depois de terminar seu treino diário. “Não era para ele ter vindo para o castelo?”
Tuya ficou séria com a pergunta. “Ele perdeu a maioria dos seus recrutas depois de atravessar a fronteira”, disse ela. “Por conta disso, ele não possui posição para entrar no castelo. Neste momento, ele está no acampamento e vai continuar lá até se redimir”.
Arran assentiu com a cabeça, pensativo. Apesar de sentir uma certa simpatia pelo Stone Heart, não era muito – a tolice do novato alto custou a vida a milhares de recrutas, e a sua inexperiência não o desculpava.
Além disso, Arran teve outras coisas com que se preocupar.
Além do seu treino regular com a espada, todos os dias passava horas a aperfeiçoar o corpo, e passava mais horas a estudar o selo do seu Reino da Destruição e a praticar a sua habilidade com a magia.
Até mesmo durante esse período de paz e tranquilidade, de forma inesperada, ele se via com pouco tempo, se esforçando para realizar todos os seus deveres. Contudo, como sabia que não podia falhar em nenhum deles, arranjou tempo sempre que pôde, levantando-se bem antes do amanhecer e só dormindo depois da meia-noite.
Em uma dessas noites agitadas, quando estava estudando o selo das sombras, recebeu um chamado para ir ao quarto do Ancião Naran.
Ainda com as palavras da Snow Cloud em sua mente, ele ficou muito preocupado, principalmente pelo fato de não ter visto nenhum sinal do Ancião Naran há semanas. Mas como convidado do castelo, não teve outra escolha senão ir.
Assim que chegou aos aposentos do Ancião, foi surpreendido com a presença de Stone Heart.
“Ótimo, você chegou”, disse o Ancião Naran quando viu Arran. “Senta-te. Temos assuntos para discutir, e não temos muito tempo.”
“Que tipo de assunto?” Arran perguntou quando se sentou numa cadeira de madeira extremamente grande.
“Encontrei uma forma para que possas recuperar as suas forças”, disse o Ancião Naran. Depois, voltou os olhos para Stone Heart, e acrescentou, “E uma maneira para o meu sobrinho recuperar a sua honra.”