As pessoas costumam fazer promessas a si mesmas. Prometem que vão se exercitar todas as manhãs, praticar desenho para se tornarem artistas, ou sorrir para os outros o máximo possível. E tentam com esforço manter a promessa. Acordam cedo, usam tintas caras para preencher a tela, ou praticam sorrir em frente ao espelho.
Então, elas pensam que um dia alcançarão o objetivo, se continuarem sem parar. Mas a fé vacila quando surge a ‘dúvida’.
— Quero dizer, eu entendo. Você nem sempre consegue manter o entusiasmo. Começa a repensar as coisas quando perde o ânimo e se cansa. E pensar por conta própria pode acabar levando a pensamentos negativos — explicou Lulu.
Havia a história de um sacerdote fiel que ainda precisava lutar contra as tentações do diabo, então a gata estava certa em suas palavras. Mas ela também falava de um futuro brilhante. Sua voz estava cheia de esperança.
— É por isso que você faz isso junto dos outros.
Uma pessoa pode se tornar fraca. Não, é questão de tempo até que se tornem vulneráveis. Um espadachim de renome ou até um pai de família carregando grandes responsabilidades não é exceção. As pessoas duvidam de si mesmas, independente da confiança e do orgulho que possam ter.
E é aí que precisam de alguém, Alguém que entenda a dor e o sofrimento com os quais ninguém parece se importar. E, através disso, uma pessoa. Não, a mente de todos, incluindo a da gata, se tornaria mais forte.
— Se você não consegue confiar em si mesmo, precisa confiar naqueles que confiam em você. E se algum dia eles precisarem de ajuda, você os recompensará confiando neles de volta.
Um ciclo positivo de confiança. Claro, também pode funcionar de forma contrária. Quando alguém trai a confiança, o relacionamento entra em um ciclo negativo. Então, a parte importante aqui é escolher bem em quem confiar. E Airen, ao pensar nisso, se virou para Lulu.
— Acho que não existe ninguém que possa confiar em mim desse jeito — ele disse.
— O quê? Por quê? Por que acha isso? — Lulu perguntou, chocada.
— Porque acho que não tem ninguém que goste de mim. Provavelmente.
Suas palavras eram amargas, especialmente porque ele não parecia incomodado com elas. Mas ele não podia evitar pensar de outra forma. Ele fugiu de tudo por medo de ser ridicularizado. Não teve a chance de formar relações de confiança com ninguém, e isso também não aconteceria no futuro.
O garoto não conseguiu dizer isso em voz alta, mas pensou enquanto ouvia Lulu. E foi aí que…
— Eu confio em você.
A gata feiticeira falou com os olhos arregalados.
— Confio que você despertará um poder relacionado à esgrima. Mesmo eu sendo apenas uma gata!
Lulu pairou no céu e girou ao redor enquanto observava Airen Farreira, que a encarava em silêncio. Sem que o garoto soubesse, a gata estava um pouco envergonhada de dizer aquilo.
Mas não mentia. Sua crença em Airen era apenas uma ‘intuição’ mas a intuição de feiticeiros poderosos era algo bem mais sólido que a de homens comuns. E como a gata sentia tanta certeza, o despertar aconteceria. Lulu concluiu seus pensamentos, então pousou sobre a cabeça de Airen.
— Eu te disse antes que você era como uma pilha de pedras no riacho — ele disse.
— Disse? — Airen perguntou.
— Disse. Mas errei em uma coisa. Pode ser uma pedrinha, mas você é muito brilhante, durável e agradável de se olhar. Ah, Kiril é uma safira, aliás.
— Enfim, não acho que existam muitas pessoas que odeiam pedrinhas bonitas. Então, pense sobre o que eu disse depois no seu quarto. Até mais!
Lulu então desapareceu, e o garoto ficou olhando para o lugar onde a gata estava por um longo tempo. Era bom já ter terminado de balançar mil vezes. O garoto deixou o salão de treino com pensamentos confusos.
“Pessoas que gostariam, apoiariam e confiariam em mim…” Airen pensou no assunto depois que voltou para seu quarto, após o jantar em família. Normalmente, ele pensaria em como colocar sua mente na espada, mas não. O que Lulu disse ficou gravado profundamente no coração do garoto.
— Será que é verdade que não muitas pessoas me odiariam…?
Ele não acreditava nisso. Tinha tido uma experiência terrível dez dias atrás, sem contar os últimos dez anos. Os nobres o atacaram como um coelho jogado a uma matilha de hienas. As emoções que sentiu na época o deixaram mais determinado, mas também inseguro.
Mas com o passar do tempo e relembrando o que Lulu disse, esses sentimentos se dissiparam. Seus pensamentos negativos e depressivos se elevaram, e sua visão, antes coberta por uma espessa neblina, pareceu se aclarar. Então, ele começou a lembrar das pessoas de quem gostava.
“Pai, mãe e Kiril.”
Sua família esperou dez anos para que ele se reerguesse. Eles o amaram e confiaram nele sem hesitar. Ele ainda estaria desperdiçando o tempo dentro do castelo, se não fosse por eles.
“Eu não teria começado a treinar esgrima.”
E eles não eram os únicos. O garoto tirou do bolso a placa de ouro branco e a placa de metal encantada. Esses dois itens eram fruto das relações que ele construiu na Academia de Esgrima Krono.
— Trabalhe ainda mais. Ou então… vou aumentar a distância. — disse Illia.
— Vou te dar um ano. Encontre sua espada e volte — disse Ian.
Provavelmente por confiarem nele, Illia Lindsay o aceitou como rival, e o Diretor Ian deu-lhe um ano para retornar. E não foram só eles. Brett Lloyd estava confiante de que ele passaria no exame final, e Judith quase o ameaçou para que voltasse à academia dentro de um ano. E os instrutores sempre o observavam com olhares gentis, embora ele mal tivesse conversado com eles.
Todos eles eram as pessoas que Lulu disse que existiriam. Muito mais gente confiava em Airen do que ele imaginava. Após perceber isso, sentiu um calor no peito e uma leveza no coração. Não parecia ruim. Ele não conseguia apagar a memória ruim de dez dias atrás, mas ela foi diminuindo.
“Tenho certeza de que Lulu também tem alguém assim.”
Airen pensou na gata feiticeira. Sempre acreditou que feiticeiros eram seres excêntricos que gostavam de solidão… Lulu também tinha um lado assim. Mas então, a gata falou sobre uma ‘relação de confiança’.
“Quem seria?”
Seria um humano? Ou um gato? Ou alguma criatura completamente diferente? Não havia como saber. Mas uma coisa era certa: a confiança deles provavelmente era muito poderosa. Isso ficou ainda mais claro conforme Airen passou mais tempo com Lulu, pois ele aprendeu o quão poderoso essa pequena gata era.
“Será que eu… poderia me tornar alguém em quem as pessoas confiam?”
“Eu não sou digno.”
Era o que Airen costumava pensar. Mas ele não pensava mais assim. Tentava não pensar. Confiava em si mesmo, em sua esgrima e no caminho que estava prestes a trilhar, para não trair aqueles que confiavam nele. Após refletir sobre isso, deitou-se na cama para dormir. Era mais cedo do que o habitual, mas ele sentia que dormiria bem naquela noite.
E estava certo. Adormeceu no instante em que fechou os olhos e entrou no mundo dos sonhos.
“Aqui tudo é sempre o mesmo.”
Havia um céu familiar, uma parede, um pátio e o homem parado no centro com sua espada. O homem logo iria balançar sua espada, e isso não era uma previsão, mas um fato estabelecido. Nada mais poderia acontecer. Airen já tinha visto esse sonho por mais de um ano, e estava mais do que certo disso. Mas não.
“O quê?!”
O homem de repente se virou para ele. E assim que seus olhos se encontraram, ele sentiu uma sensação de ser puxado e gritou em sua mente.
“O que está acontecendo?”
Ele não conseguia entender nem pensar direito. Tudo o que podia fazer era olhar nos olhos do homem. Mas isso também durou apenas um breve momento.
Airen Farreira desapareceu no vazio entre a realidade e o sonho. Algo enorme havia ocupado seu lugar na cama. Uma esfera opaca de isolamento pairava sobre a cama, como se não permitisse interferência externa. Logo após isso acontecer, a gata preta apareceu mais rápido que qualquer um no quarto.
— Isso é impossível…!
A feiticeira Lulu franziu a testa em choque, pois não esperava que Airen despertasse sua feitiçaria tão cedo, nem que fosse o melhor resultado possível. O que aconteceu tinha um lado positivo, mas também havia um lado ruim.
A gata ficou frustrada e bateu na esfera opaca, depois ficou com os olhos marejados e começou a voar freneticamente pelo quarto. Foi nesse momento que Kiril Farreira entrou.
— Airen! O que… O que é isso… Lulu!
Ela chamou Lulu assim que viu a esfera. Sentiu que seu irmão havia despertado a feitiçaria e que a esfera opaca estava de alguma forma relacionada. Mas não conseguia entender exatamente o que tinha acontecido, então precisava que Lulu explicasse.
— O que aconteceu? O que é isso?! — perguntou Kiril.
Sua voz tremia, e sua boca estava seca. Ela tinha uma intuição excepcional, como a maioria dos feiticeiros; mas, mesmo que não tivesse, a expressão preocupada de Lulu já era suficiente para deixá-la nervosa. Ela tentou manter a calma, repetindo para si mesma que tudo ficaria bem. Felizmente, o que a gata explicou não era o pior que ela poderia imaginar, mas também não era animador.
— Airen… entrou em sua mente para realizar seu desejo — disse Lulu.
— O quê? Sua mente?
— Sim… é o melhor lugar para alcançar o que ele quer, sem ser incomodado. Ninguém pode entrar lá. Ele vai treinar até estar satisfeito. Cumprindo o que prometeu… eu tenho certeza disso.
— Então, quando ele vai voltar? — A gata ficou em silêncio diante da pergunta da menina, e ela gritou novamente. — Quando! Quando ele vai voltar?!
Os servos entraram correndo no quarto ao ouvir o protesto da garota de doze anos. Eles olharam para Kiril, Lulu e a esfera com uma expressão surpresa. Todos os olhos se voltaram para a gata preta, como se a julgassem, mesmo que a culpa não fosse sua.
“Talvez a culpa seja minha, afinal.”
O rumor sobre a gata preta. Fazia apenas duas semanas desde que Lulu insistiu que o rumor não era verdadeiro e que nada de ruim aconteceria com aqueles ao seu redor. Mas, ao ver a garota em lágrimas, sentia-se tomada pela culpa.
— Ele deve sair assim que estiver satisfeito… mas ninguém sabe quando isso acontecerá — disse Lulu. Kiril ficou em silêncio e ouviu enquanto a gata continuava. — Pode ser amanhã, um mês, um ano, ou talvez…
A gata parou, mas o que queria dizer era claro. A lágrima que se acumulava nos olhos de Kiril escorreu pelo rosto. Não havia nada que Lulu pudesse fazer além de rezar para que Airen retornasse em breve.
— Ele… ele deve sair logo! — disse a gata.
— Você… você tem certeza? — Kiril perguntou.
— Sim! Confie em mim! Tenho certeza de que Airen voltará como um homem melhor em breve! Então não chore!
Kiril Farreira parou de chorar por causa das palavras dela, mas não porque estivesse convencida. Ela apenas queria acreditar.
“Por favor.”
E, com tanta frustração, a gata preta fechou os olhos e colocou todo o coração em sua oração, esperando que Airen Farreira alcançasse seu objetivo o mais rápido possível. Foi a oração mais sincera que a gata feiticeira já havia feito.
Ao mesmo tempo, Airen Farreira despertou e olhou ao redor.
Havia o céu familiar, a parede e o pátio, mas o homem não estava lá. O pátio estava vazio.
Não. Isso não era verdade. O homem de aço que costumava estar ali havia desaparecido, mas outra pessoa ocupava o lugar dele.
O Nobre Preguiçoso olhou para si mesmo. Estava vestindo roupas de treino, e uma espada de treinamento estava cravada no chão à sua frente. O garoto entendeu o que havia acontecido e pensou com uma expressão entorpecida.
“Eu estou… no sonho?”