Existiam aproximadamente dois tipos de diabos: aqueles que ignoravam completamente o próprio bem-estar em busca de destruição e pilhagem, e aqueles mais atentos à própria segurança, concentrando-se em manipular e enganar os humanos.
O demônio bufão era, claro, do segundo tipo. A razão pela qual sobrevivia há mais de dois milênios no mundo humano, sem se esconder no reino demoníaco, era sua obsessão por preservar a própria existência.
“Eu realmente posso morrer desta vez…”, pensou ao despertar na grande floresta do sul.
Ele adorava o mundo humano. Era um verdadeiro diabo que se deleitava em lançar os humanos no desespero com um simples gesto, motivo pelo qual não retornava ao reino demoníaco, apesar de seus graves ferimentos. Desesperadamente, queria se recuperar e continuar vivendo no mundo humano. Esse sonho estava prestes a se realizar quando foi destruído por malditos heróis que invadiram seu covil, deixando-o sem escolha a não ser abandonar sua forma e se esconder em um fantoche.
Infelizmente, isso não parecia ser o fim.
“Aquela mulher de cabelos negros… Ela era do reino sagrado, não era?”, pensou o diabo, sentindo um calafrio percorrer sua espinha ao lembrar da aura e do poder sagrado da mulher atravessando seu corpo.
Dada a força dela, era provável que tivesse sobrevivido ao ataque. Mesmo que não tivesse, o diabo estaria em apuros se alguém mais entrasse em contato com o reino sagrado sobre o incidente. Um exército de cavaleiros sagrados, mais poderosos do que nunca, vasculharia o continente para destruir cada fantoche que o bufão havia espalhado pelo mundo.
“O melhor cenário seria recuperar todos os fantoches para me regenerar antes que os cavaleiros sagrados agissem… mas isso não parece viável”, refletiu o bufão ao olhar para si mesmo.
O corpo, composto de cadáveres de outros diabos de 1.500 anos atrás, estava em frangalhos. Não seria possível atravessar o continente e recuperar seu poder. Poderia ser capturado no caminho e morrer de verdade. Assim, seria muito mais prudente liberar os fantoches, fazendo-os causar estragos pela região, criando um grande caos no continente e abrindo uma fenda no reino.
“Então posso retornar ao reino demoníaco para me salvar, embora talvez não consiga recuperar minha energia demoníaca…”
O dilema do bufão crescia. Ele sabia muito bem que a coisa mais sensata seria desistir de sua energia demoníaca e deixar o mundo humano para voltar para casa. No entanto, suas memórias e instintos demoníacos o impediam de tomar a decisão certa. Não podia aceitar voltar para casa de mãos vazias depois de esperar mil anos por um momento de alegria.
— Preciso de ajuda.
Foi quando um humano surgiu do nada. E ele não era um humano qualquer. A túnica branca pura e os ornamentos em seu pescoço mostravam que era um sacerdote.
No entanto, o bufão não acreditava que aquele misterioso sacerdote fosse humano. Assim, o observou por um tempo, emanando energia demoníaca e ameaçando mordê-lo enquanto o circulava.
Quando finalmente recobrou a consciência, percebeu que estava fazendo malabarismos. Com um aceno, o bufão retornou ao seu lugar.
— Entendi. Você também era um diabo — disse.
— De fato — respondeu o outro.
— Achei que ainda poderia haver alguns. Só não pensei que encontraria algum tão longe daqui. Mm-hmm… A propósito, como pode ver, não estou em boa forma agora. Minhas costas doem. Meus ombros doem, e meu peito dói, hein? E claro, minha cabeça dói! Deve ser por isso que meus sentidos estão tão bagunçados. Pense nisso! Um diabo que não reconhece um dos seus! Hee hee… — divagou o bufão.
— Não foi engraçado? Achei que fosse bastante engraçado.
— Não sou de rir muito — respondeu o outro diabo.
— Bem, dá pra ver. Não me importo, no entanto. Parece que você não está aqui para me machucar, pelo menos — disse o bufão, pulando para abraçar o colega.
O sacerdote, no entanto, permaneceu imóvel. Agora questionando se o colega precisava mesmo de ajuda, o bufão se endireitou.
— Que tipo de ajuda você precisa? — perguntou.
— Não volte ao reino demoníaco — disse o outro.
— O quê?
— Você ser encontrado me coloca em uma situação difícil. O reino sagrado está prestes a vasculhar o continente, e posso acabar envolvido nisso.
— Você deveria limpar sua própria bagunça. Então, não volte. Envie demônios ou chame a atenção do reino sagrado até que eu termine meu trabalho.
— Ha! Pelo amor dos demônios! — riu o bufão de forma vazia, enquanto segurava a cabeça e caía para trás.
Em vez de nuvens de poeira, estrelas surgiram como um efeito visual exagerado, acompanhadas de um estrondo dramático.
Mas o bufão não estava irritado de forma alguma. Na verdade, começou a ficar curioso enquanto o outro diabo orgulhosamente fazia sua exigência.
Com um sorriso malicioso, levantou-se e olhou nos olhos do diabo sacerdote.
— Vou ser honesto com você. Posso chamar a atenção deles com certeza. Já ia causar o caos como você disse, espalhando meus demônios contratados e ativando meus fantoches, sabe — disse.
— Fico feliz em ouvir isso — respondeu o sacerdote.
— E quando a fenda se abrir, vou voltar ao reino demoníaco.
— Isso não é bom de ouvir. Tenho outro pedido.
— Outro pedido? Também tem a ver com seu pequeno projeto?
— De fato. Estou criando um humano.
— Haa…
O bufão balançou a cabeça. Ninguém treinava humanos melhor do que ele. Afinal, nunca falhara, exceto com Karin Winker, o homem de 1.000 anos atrás. A razão de zombar era porque achava a ambição do sacerdote demoníaco muito modesta.
Mas…
— Claro, isso não é tudo — continuou o sacerdote.
— Hmm? — ecoou o bufão.
— Com sua ajuda, vou transformar este lugar no seu lar.
Quando o diabo sacerdote explicou seu plano, o bufão mudou de ideia.
— Você… parece delirante, mesmo não sendo humano — disse o bufão, girando o dedo na cabeça para enfatizar o ponto.
Assim como os humanos tinham mitos e lendas, os demônios tinham um velho ditado, ‘Eles podiam causar caos no mundo humano, mas nunca destruí-lo completamente’. Isso não era uma simples conversa de taverna, mas uma verdade absoluta.
Os humanos podiam destruir o continente, mas os demônios não. Como seres fora deste reino, tinham que aceitar isso.
“Aqueles que resistiram a esse destino tiveram fins terríveis”, refletiu o bufão.
Alguns antes de ele se esconder e alguns depois tentaram. O Rei Dragão Demônio, por exemplo, tentou a sorte antes de um herói descer para puni-lo por sua ganância. O demônio pereceu sem atingir seu objetivo. O bufão não desejava o mesmo fim.
O sacerdote aqui provavelmente sabia disso, razão pela qual a proposta parecia tão absurda. O bufão podia entender querer destruir alguns reinos ou manipular humanos para lutar uma guerra. Mas transformar o mundo humano no reino demoníaco?
Franzindo a testa diante da proposta inacreditável, o bufão estalou a língua enquanto sentia seu interesse dissipar-se. Ou melhor… tentou desviar o olhar quando um fio negro surgiu do corpo do sacerdote e perfurou a máscara do bufão.
Não havia muita informação. O astuto diabo sacerdote devia ter igualado o intelecto do bufão, pois falou apenas uma verdade. No entanto, essa única verdade foi suficiente para arrancar um sorriso e um aceno do bufão.
— Entendi. Era por isso. Meus sentidos não estavam quebrados. Você era especial. Eu deveria ter percebido quando mencionou ‘lar’… — murmurou o bufão.
— Um diabo que não é do reino demoníaco…! Que amigo especial você é! Ehehehe — riu o bufão, lambendo os lábios e se mexendo como uma criança animada.
O sacerdote assentiu. Sorrindo pela primeira vez, estendeu a mão como um humano.
— Hehehe.
O bufão riu inocentemente enquanto apertava a mão.
Uma semana se passou.
Embora o clima ainda estivesse frio, Airen Farreira não teve chance de sentir isso. O espadachim que treinava com ele todos os dias era um dos dez melhores do continente.
Embora cada sessão fosse brutal e perigosa demais para um treinamento comum, Airen estava aprendendo muito. Por isso, se esforçava ainda mais.
“Vento, hein…?” pensou Airen enquanto seguia para encontrar Joshua.
A Espada do Céu era, de fato, um estilo de espada único que ele nunca havia experimentado antes. Embora Illia Lindsay, sua amiga, também lutasse como uma tempestade, ela não conseguia comandar o vento perfeitamente como Joshua.
“Como posso resistir por mais tempo?”, questionava-se Airen.
Airen sequer pensava em derrotar Joshua. Embora alguém pudesse chamá-lo de covarde por admitir a derrota antes mesmo do combate, Joshua era simplesmente forte demais. Quando estava perto, seu vento implacável derrubava a postura e o foco de Airen. Quando estava longe, sua espada o subjugava como uma tempestade.
Embora Airen se orgulhasse de sua resistência e dissesse que poderia brandir sua espada o dia todo, ele se via exausto após apenas trinta minutos com Joshua. Hoje, no entanto, ele planejava ir além.
“Vou aguentar uma hora!”, ele prometeu a si mesmo enquanto respirava fundo e olhava para frente.
Antes que percebesse, já havia chegado ao local. Imaginando que Joshua Lindsay estaria parado no centro do campo de treinamento, como no dia anterior, ele convocou sua espada larga. Mas foi só o que conseguiu fazer, pois não conseguia se aproximar do espadachim.
Outro havia tomado seu lugar.
Ignet Crecensia. Totalmente recuperada de seus ferimentos, a maior gênia do continente, que uma vez levou Carl Lindsay ao desespero, agora enfrentava Joshua Lindsay, o prodigioso intelecto que a precedera.