O fogo na lareira tremeluziu por um segundo antes de se extinguir. Rouxinol se revelou e colocou um pouco de lenha. Sons de estalos vieram da lareira e as chamas subiram de repente.
Roland olhou para a sombra projetada de sua taça e respirou fundo. Tilly já havia saído há algum tempo, e ele estava recordando a conversa para ver se havia alguma maneira de mudar o resultado, mas não encontrou. A confiança é algo complexo, e somente com o tempo é que ele poderia conquistar a confiança de alguém inteligente como Tilly.
— Parece que você não é capaz de tudo, afinal. — Rouxinol disse, limpando a sujeira da mão e sentando-se no lugar de sempre — O que você disse a ela naquele dia?
— Uma mentirinha necessária. — Roland se inclinou na cadeira — É normal que ela não acredite. — Ele fez uma pausa e continuou — Você disse que tinha um irmão mais novo. Se de repente ele se torna muito diferente do que costumava ser, e continuasse dizendo que ainda é ele mesmo, você acreditaria nele?
— Você quer dizer aquele cara que parecia inocente, mas depois me traiu descaradamente? — Rouxinol fez um beicinho — Até onde me lembro, não há diferença entre ele e uma besta demoníaca.
— Bem, eu não deveria ter mencionado isso.
— Não importa mais. De qualquer forma, eu não sou mais um membro da Família Gilen, e eles são apenas estranhos para mim. — Ela disse descuidadamente.
— Tilly e eu também éramos como estranhos. — Roland suspirou e continuou — Ou melhor dizendo, eu não me dava bem com ninguém no palácio.
— Se você se sentir entediado, você pode compartilhar essas coisas comigo. — Rouxinol sorriu sutilmente — Eu sempre tive curiosidade de saber como era a vida da família real e também o quão ruim você era. E quando digo ruim, digo a ponto de sua reputação se espalhar e chegar até a Cidade da Prata.
— Para ser honesto, naquela época eu era terrível. — Roland fez uma careta e começou a contar brevemente algumas das histórias de quando ele e Tilly eram crianças — Acho que ela começou a me odiar quando eu joguei ela em cima dos vidros quebrados.
— Mas… que coisa horrível. — Rouxinol fez um beicinho e continuou — Mas sabe, eu acho que ela não te odeia agora.
— É mesmo? — Roland levantou as sobrancelhas e perguntou — E como você sabe?
— É claro que eu sei. Ela não disse essas palavras “além do mais, por motivos pessoais, eu também gostaria de ficar aqui para aprender esses conhecimentos tão interessantes”. — Rouxinol disse imitando o tom e o jeito de Tilly — Parecia mais uma forma de consolo, mas a verdade é que ela não mentiu sobre isso. Se ela ainda te odiasse tanto quando antes, ela nunca sentiria vontade de ficar aqui.
— Você está me consolando? — Roland sorriu e disse.
— Só estou dizendo a verdade. — Rouxinol deu de ombros e continuou — E acho que é bom manter o status quo.
— Por quê?
— Ela prometeu dar prioridade no envio de bruxas para a vila a fim de apoiá-lo contra os demônios, então não há diferença se ela fica aqui ou não. Se todas as bruxas de Ilha Adormecida vierem para a vila ao mesmo tempo, com mais bruxas como Cinzas, olha, eu ia ficar bastante ocupada. — Rouxinol jogou um pedaço de peixe seco para cima, pegou com a boca e murmurou — Nem todas as bruxas são obedientes como Maggie.
Ouvindo isso, Roland riu e perguntou:
— Então você teve alguns problemas com Cinzas antes?
— Hã? Não, claro que não, como eu poderia? — Rouxinol balançou as mãos e disse — Eu só fico de olho nela ocasionalmente para evitar que ela se volte contra a União das Bruxas.
— Mesmo?
Ela virou a cabeça para o outro lado e assobiou.
— Será que estou pensando coisas? — Roland disse olhando para Rouxinol — Por que você parece estar tão feliz vendo que eu fui rejeitado?
— É só impressão sua. — Rouxinol afirmou, e então olhou para a porta — Bem, alguém está vindo. — Com essas palavras, ela desapareceu.
Mas que desculpinha esfarrapada para ela sair assim de supetão. — Roland pensou, mas ficou muito surpreso quando ouviu alguém bater na porta do escritório — Já é quase meia-noite. Quem viria a esta hora da noite?
Ele trocou a vela do candelabro e disse:
— Entre.
Era Agatha.
O Príncipe ficou chocado por um momento e perguntou:
— Algum problema?
Ela não respondeu de imediato, e foi sentar na cadeira em frente à mesa, dizendo:
— Wendy disse que a pistola de pederneira que pode lutar contra Extraordinárias e o canhão com um incrível alcance são ambas ideias suas. É verdade? E que as teorias por trás dessas coisas e seus métodos de fabricação estão todos registrados nos livros que você escreveu?
— Você está se referindo ao livro Fundamentos Teóricos da Ciência Natural e Química Elementar? Há teorias relacionadas neles, mas quanto aos seus métodos de fabricação, eles não estão escritos porque são muito extensos. — Roland disse — Afinal, eles são apenas livros didáticos para teorias elementares. Mas, me diga, você veio me ver só para perguntar isso?
— Somente as integrantes da União das Bruxas podem aprender tal conhecimento, correto? — Ela não respondeu, mas continuou perguntando.
Roland assentiu e quase descobriu o que ela queria dizer.
— Então eu gostaria de fazer parte da União das Bruxas. — Agatha disse sem pausa.
— Mas a União das Bruxas é uma organização pertencente a Vila Fronteiriça. Tem certeza de que quer trabalhar para a vila? — Roland disse curioso — O Lorde da vila não é uma Transcendente, apenas um mortal comum.
— Qualquer mortal que possa criar armas para enfrentar demônios não é nada comum. Mesmo na Sociedade Expedicionária, haveria um lugar para você. — Agatha parou um pouco e disse — Desde que não cause dano às bruxas e não seja contra as sobreviventes da Aliança, não me importo… em cooperar com um mortal.
Roland pensou que, provavelmente, ainda era um pouco difícil para Agatha dizer em voz alta “trabalhar para um mortal”, mas a capacidade dela de aceitar coisas novas o deixou bastante impressionado. Talvez, pessoas envolvidas em pesquisas sempre serão capazes de aceitar coisas novas mais rapidamente. Ele conteve seu sorriso e disse:
— Eu pensei que você acompanharia Tilly até Ilha Adormecida, que é uma cidade construída pelas bruxas.
— É apenas um refúgio para se esconder da caça da Igreja. — Agatha balançou a cabeça e disse — Eu me informei sobre tudo antes de tomar essa decisão. E eu vi tantas cidades governadas pelas bruxas antes de estar congelada… mas todas elas se foram e não deixaram sequer um rastro para trás. Não tem sentido construir uma cidade somente com bruxas e não pudermos derrotar os demônios. Eu gostaria de poder ver a esperança da vitória aqui.
— Você vai. — Rolland acenou com a cabeça — Mas quanto a não ser contra as sobreviventes da Aliança… eu não posso prometer isso, pois provavelmente elas não desapareceram, apenas mudaram de nome para cobrir suas ações.
— O quê? — Agatha ficou chocada.
— Eu pensei em tudo o que você disse com muito cuidado. Mesmo que as pessoas e bruxas tenham fugido de Taquila após a derrota, ainda haveria Transcendentes e muitas Guerreiras Sagradas da Aliança. Nesta terra que ainda não era desenvolvida, é praticamente impossível extinguir todos os remanescentes, a não ser que tenha sido proposital. — Roland disse em voz alta — A Igreja é provavelmente uma transformação da Aliança. Não foram os mortais que surrupiaram o poder e os métodos de criação do Exército da Punição Divina das bruxas, mas as próprias bruxas que fizeram isso e transformaram a Aliança em uma organização que caça às bruxas. Desta forma, é mais conveniente para elas criar um grande número de guerreiros do Exército da Punição Divina.
— Você está dizendo que toda esta situação trágica onde as bruxas são oprimidas e caçadas é culpa da Aliança? — Agatha perguntou com grande surpresa.
— Eu não tenho certeza ainda. É apenas um palpite. — Roland levantou-se e foi até a estante, tirou vários livros negros grossos e entregou-os a ela — Nestes livros você pode encontrar a cronologia escrita pela própria Igreja, e a história dos Quatro Reinos escrita pelos astrólogos. Você pode fazer a relação. De qualquer forma, a Igreja é agora nossa inimiga que devemos eliminar no futuro. Se você decidir ficar do lado das bruxas e lutar contra os demônios comigo, você é muito bem-vinda à União das Bruxas.