As carruagens pararam e foram enfileiradas uma atrás da outra. Em seguida, os Irmãos Chom as amarraram com uma corda. Dessa forma, seria possível que apenas uma pessoa conduzisse todas as carruagens.
Após uma intensa discussão, Annie finalmente convenceu as outras bruxas e as levou para dentro da floresta, sob a guia de Palhaço.
Em seguida, foi a vez de Yorko e os outros.
Rocha pegou a sacola de comida e passou por Yorko, dizendo:
— Meu Lorde, devemos ir imediatamente. Se os inimigos nos verem, nossos esforços não terão valido a pena.
— Espere um minuto. Eu quero conversar com ela.
Yorko havia precisado de apenas 15 minutos para tomar uma decisão, embora ele tivesse pensado que demoraria muito mais.
Número 76 havia se voluntariado para ser o sacrifício, assim como Annie e Rocha. Mas como líder do grupo, Yorko, no fim, decidiu escolher Número 76.
“Eu passei cinco anos treinando técnicas de combate nos Mercadores Negros. Eu também sou uma boa corredora, então não se preocupem”. — As palavras de Número 76 foram simples, como se ela estivesse prestes a fazer algo normal. — “Se eu não me engano, tem uma aldeia próximo daqui, não é? Se eu dirigir as carruagens até a aldeia e me enfiar no meio da multidão, tenho certeza que eles não conseguirão me achar. Após essa crise, eu vou me reencontrar com vocês lá na fronteira do Reino de Castelo Cinza. Então, por favor, esperem por mim[1].”
Mas Mágico havia sussurrado no ouvido de Yorko que a aldeia ficava muito longe, e que seria impossível alguém chegar lá sem antes ser alcançado pelos cavaleiros.
Se os cavaleiros não estivessem a mando do Rei Appen para capturar as bruxas, então não havia motivo para preocupação. Contudo, se o que Mágico disse fosse verdade, Yorko podia imaginar facilmente como os cavaleiros descontariam a raiva deles ao descobrirem que Número 76 os havia enganado.
Yorko suspeitava que, se ele fosse o sacrifício, poderia sobreviver. Appen Moya provavelmente pediria um “valor-resgate[2]” para Roland. Porém, ele não estava com pressa para tomar essa decisão arriscada. Por outro lado, se qualquer outro do grupo fosse o sacrifício, certamente seria executado sem remorso.
Yorko estava ciente de que ele provavelmente seria a melhor escolha para ser o sacrifício.
Ele quis dar o passo à frente incontáveis vezes, mas se acovardava toda vez que tentava abrir a boca.
[Um Embaixador representa o rei. Não posso deixar que me peguem e zombem de mim, pois isso seria o mesmo que humilhar o Rei de Castelo Cinza.] — Yorko se confortou. Infelizmente, agora ele não conseguia mais olhar nos olhos de Número 76[3].
[Pelo amor de Deus! Ela é apenas uma escrava!]
Yorko se aproximou de Número 76 e, quando ele estava prestes a dizer algo, ela falou primeiro:
— Meu Lorde, essa é minha decisão. Isso não tem nada a ver com os Mercadores Negros. Embora Máscara Prateada tenha dito diversas vezes que deveríamos estar sempre prontas para nos sacrificar, eu nunca gostei muito dessa ideia. Mas o que importa é, eu pensei que viveria no subterrâneo por toda a minha vida, adulando aqueles clientes até ficar velha e me tornar uma nova “Máscara Prateada”. Ou então, me tornar uma faz-tudo, que também nunca veria a luz do sol. Felizmente, o senhor me tirou daquele lugar. Por sua causa, eu pude presenciar a vastidão do mundo aqui fora. E por isso, eu não tenho mais arrependimentos. Por favor, vá para a floresta. O senhor está ficando sem tempo.
— Mas…
Número 76 sorriu e disse:
— Obrigada, meu Lorde. Se o senhor não tivesse dito nada, eu teria sido morta naquela caverna. Minha vida pertence a você, e eu vou sobreviver a esta crise. Nós nos veremos novamente no Reino de Castelo Cinza.
Os Irmãos Chom apressaram Yorko:
— Meu Lorde, temos que ir.
Yorko respirou fundo, virou-se e foi embora.
Sim, ela é apenas uma escrava. Essa é a melhor opção.
Yorko acreditava nisso, mas ele ainda sentia uma inquietação inexplicável no coração.
Antes de entrar na floresta, ele virou o rosto para trás uma última vez. As carruagens haviam começado a se mover lentamente, sob a direção de Número 76. Ela não perdeu tempo, e nem acenou com a mão para se despedir. Ela agiu como se estivesse partindo em uma viagem normal.
Rapidamente, as sombras da floresta bloquearam a visão de Yorko.
Número 76 não conduziu as carruagens até a aldeia.
Após alguns minutos de viagem, ela puxou as rédeas dos cavalos e parou as carruagens.
Se ela continuasse a avançar, não conseguiria mais ver a entrada da floresta.
Ela pulou do cavalo e sentou-se na parte de trás da última carruagem, esperando quietamente a chegada dos perseguidores.
Ela ficou esperando por um longo tempo, contudo, pareceu que apenas um minuto havia se passado. “Esperar” era um hábito que ela havia desenvolvido na vida; algo que ela já havia se acostumado.
Quando o sol começou a se pôr no oeste, ela finalmente conseguiu ver as silhuetas dos cavaleiros aparecendo no fim da estrada de terra.
Eles não usavam emblemas ou fitas vermelhas, como era o caso dos cavaleiros da Cidade Real do Alvorecer. Contudo, suas armaduras refinadas e cavalos imponentes indicavam que eles vinham de uma cidade grande.
Número 76 rapidamente contou o número de cavaleiros. Havia 35; metade eram escudeiros, cujas armaduras e comportamento pareciam ser mais refinados que os cavaleiros de uma vila ou aldeia pequena.
O líder dos cavaleiros franziu as sobrancelhas ao ver as carruagens paradas no meio da estrada. Ele deu a ordem e todos os cavaleiros avançaram simultaneamente, cercando as carruagens.
— Senhor Lougan, não há ninguém nas carruagens, a não ser aquela mulher!
— Interessante… Parece que o Embaixador do Reino de Castelo Cinza enviou escoltas e nos descobriu. — Lougan sorriu com escárnio. — Karo, Jester, vocês dois, voltem e procurem por marcas de pegada. Já que eles abandonaram as carruagens e fugiram, devem ter deixado algum rastro para trás.
— Senhor, o que fazemos com a mulher?
— Cortem os pés e as mãos dela, em seguida a interroguem. Infelizmente, já que ela se atreveu a ficar para trás, provavelmente vocês não conseguirão nenhuma informação dela.
Número 76 se levantou enquanto dizia:
— Não há por que me interrogarem. Eles fugiram pela floresta, bem ali, mas…
— Mas o quê? — Um cavaleiro puxou a espada com uma mão e estendeu a outra para agarrar o braço de Número 76.
Aparentemente, os cavaleiros não poupariam a vida dela, mesmo se ela contasse tudo o que sabia.
— Mas vocês não terão a chance de vê-los novamente…
Com uma velocidade tremenda, Número 76 levantou a mão e apertou o pulso do cavaleiro mais próximo. Ela jogou o cavaleiro para o alto, fazendo-o cair em sua direção.
Em seguida, ela prendeu a cabeça do cavaleiro debaixo do braço, dando um mata-leão.
Logo depois, ela aplicou força no braço e começou a esmagar. O elmo do cavaleiro fez um barulho de ferro sendo deformado, esmagando a parte inferior do rosto dele, e fazendo com que sua boca se parecesse com a de um peixe.
— Solte Charlie agora!
— Merda! Matem ela!
Os outros cavaleiros puxaram suas espadas e avançaram em direção a Número 76.
Número 76 pegou a espada do cavaleiro morto e jogou o corpo dele na direção dos outros cavaleiros que avançavam, forçando-os a recuar. Aproveitando-se dessa oportunidade, ela enfiou a espada no inimigo mais próximo.
[1] – Vocês já devem ter percebido, mas vou explicar mesmo assim. O itálico simboliza “pensamento”, e as aspas simbolizam uma referência, algo que foi dito no passado por alguém. Então, isso não passa de Yorko se lembrando do que Número 76 disse.
[2] – Valor-Resgate é, como o próprio nome já diz, um valor para resgatar alguém.
[3] – Esses diálogos cercados por [colchetes], simbolizam um pensamento antigo. Ou seja, ele pensou isso, mas não naquele momento.
Me perdoe 76, por um momento eu achei que você iria trair o Mão Mágica.