Ao usar esse Anel Mágico, Número 76 conseguia observar o “diálogo” que uma bruxa tinha com Deus ao usar o poder mágico.
O “diálogo” aparecia como uma luz alaranjada que conectava a bruxa com o céu vasto.
De acordo com os registros documentados, demônios e algumas bestas demoníacas também produziam o mesmo tipo de luz alaranjada.
Deus não demonstrou carinho ao mundo.
Toda vez que pensava nisso, ela se sentia preocupada.
Quando comparadas aos incontáveis demônios, as bruxas não eram uma nação muito poderosa. Os poderes delas não podiam ser herdados e nem cultivados. A única forma de despertar o poder de uma bruxa era a sorte. Além disso, o poder mágico das bruxas era mais fraco do que o dos inimigos.
Felizmente, a Chave não era algo imutável.
As bruxas poderiam mudar a Chave por meio do Alto Despertar. Fazendo isso, elas conseguiriam receber uma força mais poderosa de Deus.
Desde que saiu do Reino do Alvorecer, Número 76 havia observado as luzes alaranjadas de Amy, Annie e Salvadora. Salvadora era a mais forte delas, e Annie era a mais fraca. Contudo, no geral, a diferença entre as três era insignificante. Os poderes delas eram quase do mesmo tamanho, da largura de um dedo, e elas estavam bem longe do requisito mínimo para ativar o Instrumento da Retribuição Divina.
Ela tinha bons motivos para acreditar que a Escolha Divina era uma Bruxa Sênior.
A porta da cabine abriu de repente e Yorko, o Embaixador do Reino de Castelo Cinza, entrou. Ele arqueou as sobrancelhas, aproximou-se da cama e disse:
— O cheiro dessa erva é mais nojenta que a da latrina. Por que alguém usaria uma coisa tão fedorenta como medicina?
Número 76 sorriu e disse:
— Não sei, talvez os marujos achem que o odor forte da medicina possa ter alguma propriedade curativa, mas o importante é que eu me sinto melhor, e alguns ferimentos que eu tinha já cicatrizaram.
Claro, isso não tinha nada a ver com a medicina, e sim com o seu receptáculo de Guerreira da Punição Divina.
— Se essa medicina não funcionar direito, eu vou enfiar a cabeça deles na latrina. Assim eles vão se acostumar com o cheiro dessa medicina. — Yorko pegou uma cadeira e se sentou.
— Pobres marujos. — Ela falou em voz baixa. — Amy me disse que foi você que perguntou a eles se eles conheciam alguma medicina que podia curar lesões e ferimentos.
— Enn… Mentir para um nobre é um crime grave. Se a medicina não funcionar, eles só podem culpar a si mesmos. — O Embaixador disse. — Caso não funcione, farei eles beberem a medicina com água e mel.
Número 76 sorriu, impotente. Durante essa longa viagem a navio, Yorko havia visitado ela pelo menos uma vez ao dia. As visitas eram curtas, mas eles sempre tinham uma conversa legal. Ela achava que, embora Yorko fosse uma pessoa comum, quando ele passava um tempo com uma mulher, ele era mais engraçado e divertido do que a maioria dos nobres. Mesmo na velha Taquila, Yorko ainda seria famoso entre as mulheres. Para ela, após perder quase todos os sentidos, a comunicação verbal havia se tornado a forma mais prazerosa de se passar o tempo.
Após conversarem por um tempo, o Embaixador de repente ficou quieto, o que não era normal.
Número 76 pensou por um tempo e logo se ergueu na cama com uma mão, perguntando provocantemente:
— O senhor precisa que eu te sirva? Embora meu corpo esteja um pouco rígido…
— Eu já disse isso muitas vezes, você não é mais minha criada. Não use mais a palavra “servir”. Você agora é uma pessoa livre do Reino de Castelo Cinza, entendeu? — Ele colocou a mão na testa e disse: — Você ainda está ferida, e eu não sou daquele tipo de nobre que tem fetiches doentios…
— Então, o senhor só quer conversar comigo?
Após ouvir isso, a expressão facial de Yorko mudou um pouco. Ele tossicou (limpou a garganta) e disse:
— É… Bem… Eu quero te fazer uma pergunta. O que você planeja fazer quando chegar na Cidade de Primavera Eterna?
— Hmmm… Procurar alguma taverna e… me tornar uma empregada? Ou talvez trabalhar numa casa de apostas, isso também seria bom. — Número 76 inclinou a cabeça, pensativa, enquanto dizia. — Claro, isso se alguma bruxa conseguir curar meu corpo.
Ao ficar na Cidade de Primavera Eterna, ela conseguiria fazer qualquer coisa. Ela já havia conquistado a confiança das bruxas do Reino do Alvorecer, então com certeza ela teria a chance de conhecer mais bruxas da “União das Bruxas”.
— Você devia fazer outra coisa. — Yorko a dissuadiu. — Já que você agora é livre, por que não tenta algo novo?
— Como? Os Mercadores Negros só me ensinaram a servir homens. Embora eu queira me tornar uma guarda, não sei se, quando meus membros forem curados, eu serei tão flexível quanto antes.
— As pessoas da Cidade de Primavera Eterna ensinarão algo a você. Eu soube que Sua Majestade arranja trabalho para qualquer um. — Yorko disse antes de parar… — Se você encontrar qualquer dificuldade no futuro, saiba que pode me procurar a qualquer hora.
Ele hesitou por tanto tempo somente para falar isso? — Número 76 se sentiu um pouco tocada. Ela conhecia a personalidade de Yorko. Talvez fazer uma promessa fosse algo difícil para ele.
— Hmmm… Tá bom. — Ela abaixou a cabeça antes de dizer: — Obrigada!
Após quatro dias, os marujos trouxeram uma boa notícia. Elas finalmente haviam chegado na nova cidade da Região Oeste do Reino de Castelo Cinza, Cidade de Primavera Eterna.
Todas as bruxas se reuniram na cabine, onde estava Número 76. Elas estavam nervosas, esperando pela próxima ordem. Entre elas, Annie era a que mais estava nervosa. Ela abria a janela a cada minuto, olhando para a doca. Se ela encontrasse algo suspeito, faria todas as bruxas pularem no rio congelante sem pestanejar.
Número 76, contudo, sentiu que tudo estava muito barulhento. Barulhos altos de “corneta[1]” não paravam de soar, e o rio lá fora parecia bastante agitado, como se tivesse milhares de navios passando ao mesmo tempo.
Não estamos no inverno? Mesmo se fosse verão, como a doca pode estar tão movimentada assim?
Contudo, ela “não podia se mover”, então não podia ver a cena do lado de fora da janela.
— Annie, olhe ali, cadê os marujos daquele navio? Tá navegando sem velas? — Amy perguntou, surpresa.
— Talvez os marujos estejam remando sob o convés. — Annie de repente parou e se inclinou pela janela. — Fiquem quietas! Alguém está vindo!
Espadim se sentiu nervosa e perguntou:
— Quantos estão lá fora?
— Somente quatro pessoas. Acho que não notaram a gente. — Annie franziu as sobrancelhas. — E… todas são mulheres.
— São bruxas? — Amy se levantou de repente. — Viu? Eu disse que o Senhor Embaixador não mentiria pra gente!
— As integrantes da Associação Presas de Sangue também são todas bruxas, mas são diferentes de nós. — Ela disse em voz baixa. — Só sigam meus sinais, como a gente combinou antes.
— Certo! — Todas assentiram com a cabeça.
Logo, alguém bateu na porta e quatro mulheres entraram na cabine. A líder era uma dama de cabelo vermelho.
— Bem-vindas à Cidade de Primavera Eterna, irmãs! — Ela disse com um sorriso.
Annie ficou surpresa com a demonstração de cordialidade dela. Até mesmo Número 76 parecia surpresa. Embora em Taquila as bruxas fossem abundantes, elas não eram tão amigáveis a ponto de receber uma bruxa recém-despertada de forma tão cordial… — Não me diga que elas não diferenciam as bruxas pelas habilidades?
O fato de uma bruxa combatente ser comparada a uma bruxa não-combatente era algo que demonstrava desrespeito.
Neste momento, Número 76 de repente viu uma bruxa de cabelo loiro que olhava diretamente para ela. Os olhos penetrantes da bruxa sorridente pareciam ver através de tudo.
[1] – Ela está se referindo aos apitos que os grandes navios fazem antes de partir.