— Como você pode pensar isso?
Era tarde; as luzes da vela iluminavam a sala e afugentavam a escuridão que estava tentando se acalmar. Duas pessoas estavam sentadas no centro do quarto, onde havia uma mesa desgastada e manchas na superfície do chão. Eram Zich e Lubella.
A situação era assim: depois que Lubella afugentou os bandidos, curou a vítima e verificou sua identidade, levou Zich à sua hospedagem. A crítica era aparente no rosto dela, mas ele parecia calmo.
— O que você quer dizer com isso?
— Eu te falei pra ajudar aqueles que estavam em necessidade. Quem poderia entender isso como ajudar gangsters?!
Alguns dos Cavaleiros Sagrados que a protegiam na sala também pareciam atordoados.
— Você não acabou de me dizer pra ajudar aqueles que precisam sem adicionar outras condições? Aqueles caras pareciam estar tendo sérias dificuldades.
— Mas é questão de bom senso!
— Eu pedi um conselho porque não tenho esse senso comum!
Ela ficou sem palavras com a resposta e agarrou a sua cabeça. Como alguém que passou a maior parte de sua vida na igreja, foi a primeira vez experimentando algo assim.
“Não, isso não é por causa da minha falta de experiência.”
Mesmo alguém pessoa com muita experiência provavelmente nunca teria conhecido uma pessoa como ele.
“Se eu considerar isso, mesmo essa é uma experiência incrível de se ter.”
Se pelo menos não pensasse assim, teria a cabeça destruída com as perguntas surgindo à mente.
— Por favor, continue a tentar ajudar os fracos.
— Você está sorrateiramente mudando as condições um pouco.
— E quem você acha que é a causa disso?
Ela olhou para ele. Todos os tipos de pensamentos de como deveria resolver o assunto passaram por sua mente. Então, se levantou do seu lugar.
— Bem, por enquanto, vamos pedir desculpas à vítima amanhã.
— Pra quem?
— Pra pessoa que você acabou de espancar.
— Eu já disse isso antes, mas simplesmente fiz o que você mandou…
Com o olhar fulminante dela, deu de ombros.
— Vou pedir desculpas.
— Tá tudo bem.
Briand Sude aceitou com graciosidade as desculpas de Lubella e Zich. Graças ao tratamento dela, ele tinha um sorriso alegre e parecia muito tranquilo — não, legal. Zich deu um sorriso satisfeito e assentiu e então olhou para Lubella.
— Ele disse que tá tudo bem.
— Por favor, peça desculpas a ele sinceramente…
— Tá tudo bem, de verdade.
Com as palavras dele, Zich ergueu o queixo ainda mais alto. Ela queria dizer mais, porém desistiu porque pensou que nada passaria por Zich.
— Sinto muito. No lugar dele, peço desculpas.
— Não, tá tudo bem mesmo, sério. Além disso, não é como se você, senhorita Lubella, tivesse feito algo de errado.
— Fui eu quem deu a sugestão a ele. Eu também compartilho algumas culpas.
Claro, ela não deu o conselho errado. Quem teria pensado que alguém poderia interpretar com tanta imprecisão as palavras dela assim? Mas ainda achava que tinha alguma responsabilidade sobre o assunto.
— Você é realmente gentil, senhorita. Como esperado de alguém dos Karuwiman.
— Não, ainda falho.
Contudo, como se tivesse gostado, um pequeno sorriso curvou seus lábios.
— Mas o que aconteceu? Por que os bandidos te bateram no beco?
Olhou de Zich para Sude em busca da verdade. O primeiro a responder foi Zich.
— Não sei ao certo. Os bandidos disseram que ele tinha algo importante e só precisavam levar isso.
— O que era?
— Sei lá.
— Você não sabia o que tinha que tomar, mas espancou uma pessoa?
— A parte importante era pegar o item. O que era não importava.
— Me diz uma coisa, você é um desses bandidos ou uma coisa do tipo?
— Eu não te disse que vivi uma vida difícil?
Como se tivesse revestido o rosto com metal, a expressão dele não mudou nada. Foi num ponto em que até Hans, que veio com ele, suspirou.
“De qualquer forma, o que ele quer dizer com uma vida difícil? Sir Zich não vivia uma vida tranquila até recentemente?”
Todavia Hans lembrou-se do ambiente em que ele cresceu.
“Bem, se eu considerar a situação dos Steelwall e dele, acho que você poderia dizer que ele viveu uma vida dura”‘
De repente, sentiu-se um pouco arrependido pelo seu comportamento passado. Se tivesse mantido até mesmo a etiqueta mais básica, Zich não o teria arrastado com força para fora da residência do conde, e não teria que sofrer assim.
Já que parecia que não poderia obter mais informações úteis de Zich, Lubella voltou sua atenção para Sude de novo.
— Podemos saber mais? Claro, pode ser difícil revelar tudo para nós, mas podemos ajudá-lo com a sua situação.
Lubella sem muitas palavras e com cuidado tentou o convencer, no entanto Sude hesitou. Parecia estar se perguntando se deveria contar ou não.
— Em primeiro lugar, eu não tenho nada importante como ele mencionou — disse, enquanto apontava para Zich.
— Você não tem?
— Sim, eles apenas inventaram isso para me perturbar sem motivo.
— Foi apenas para isso?
— Sim, mas eles tinham um propósito.
Lentamente olhou ao redor. Seguindo o seu olhar, todos na sala torceram o pescoço em todas as direções. O lugar onde estavam era uma loja que parecia vender roupas, enquanto tecidos enrolados enchiam as prateleiras e paredes. Contudo, se alguém perguntasse a cem pessoas se parecia boa, todas as centenas responderiam: “Não, não parece”.
O edifício de madeira estava meio inclinado de uma forma parecida que iria quebrar a qualquer momento. Uma teia de aranha pendurada no canto da sala, estandes de exposição foram avistados com manchas que pareciam não poder ser apagadas, não importa o quanto esfregasse, e o chão enferrujado e podre fazia os clientes se sentirem desconfortáveis.
— É uma loja desgastada, certo?
Sude apontou. Lubella balançou a cabeça com firmeza.
— Não, é uma grande loja. Não podemos apenas julgar algo com base em seu exterior.
— Estou grato por dizer isso. Como disse, senhorita Lubella, este é um lugar especial para nós. Desde o tempo do nosso avô, conseguimos sobreviver graças à loja. Mas, além do que você e eu pensamos, não tem uma aparência muito convidativa — disse em um tom um pouco zombeteiro. — De alguma forma, tornou-se muito deplorável. Embora a loja seja muito preciosa para nós, se olharmos para ela objetivamente, não tem tanto valor. Não, costumava ser assim.
— Onde está a diferença para agora?
— Muita coisa. Você deu uma olhada nos arredores quando veio para cá?
— Sim, a maioria dos lugares estavam sendo reconstruídos.
— Recentemente foi decidido que essa área se transformaria em uma zona de negócios. Não sei se tenho sorte ou não, mas a loja está incluída dentro.
Porti era uma cidade negociante colossal. Usando a sua base estratégica, acumulou grande riqueza e ganhou controle autônomo sobre uma região específica do estado. Como esperado, os negócios eram a coisa mais importante para ela, e a razão pela qual eles escolheram uma nova zona de negócios também foi por essa razão.
— Eles estão tentando roubar a loja?
À pergunta de Lubella, ele fez um aceno pesado.
— Há algum tempo, me pedem para entregar minha loja a eles. Claro, eu não tenho o mínimo interesse em deixar este lugar ir na memória do meu avô e pai…
— Os importunos devem ter começado aí.
Ele não respondeu, mas todos sabiam o que o silêncio significava.
— Quem são?
— São a Corporação Sirene. É o grupo que faz as novas lojas ao lado da minha. Pelo que sei, estão planejando fazer uma enorme que seja grande o suficiente para incluir a minha.
— Isso significa que eles decidiram roubar a loja de você? — A voz dela estava misturada com angústia — Você pediu ajuda ao magistrado?
— Não adianta. Fazem parte deles. O chefe da corporação está oferecendo subornos ao prefeito, e não apenas isso, mas também é o irmão mais novo de um dos associados do prefeito.
— De fato, não há bons rumores sobre o prefeito daqui.
Um dos Cavaleiros Sagrados explicou ainda mais a ela, e a sua raiva atingiu o pico.
— Tentarei me encontrar com o prefeito amanhã.
— Perdão?
— Graças a Deus, há uma maneira de eu expiar meus pecados.
Enquanto olhava para ela com olhos perplexos, Lubella deu um sorriso reconfortante.
— Senhorita Lubella, por acaso…
— Eu sei. Mesmo que sejamos Karuwimans, não devemos tentar nos envolver na política.
Ela assentiu em resposta às palavras cuidadosas do Cavaleiro Sagrado. Embora Karuwiman fosse uma religião que teve influência considerável sobre muitas pessoas, terminou aí. Mesmo a realeza e os aristocratas que inclinaram a cabeça com prazer para receber a bênção de Karuna dela esqueceriam os seus sorrisos, derramariam ganância e a antagonizariam se tentasse se intrometer em seus interesses.
“Mesmo que eu não possa prejudicá-los abertamente, posso mantê-los sob controle.”
Contudo, se o pior acontecer, pode sair pela culatra.
— Se tentarmos nos intrometer em cada pequeno assunto, podemos perder nossa capacidade de usar o nome dos Karuwiman. O que acontecerá se outros tentarem nos controlar? Mas se nos apegarmos à nossa fé e ajudarmos os fracos, as pessoas continuarão a gostar de nós.
Mesmo com o perigo de influências externas, a maneira como o grupo agiu ao longo das décadas foi a razão pela qual eram amados hoje. Os Cavaleiros Sagrados assentiram. Não pretendiam encobrir esse incidente e passá-lo, porém também queriam dar um conselho a ela, quem serviram.
Sude os deteve com uma expressão difícil.
— Você não tem que ir tão longe…
— Isso não envolve apenas você. Como uma pessoa dos Karuwiman, não posso simplesmente ignorar a injustiça e esperar. Não se preocupe. Vou garantir que nenhum dano lhe aconteça como resultado.
— Você realmente é virtuosa e nobre. Orarei para que o seu futuro seja dotado de uma bênção eterna.
Ele curvou-se profundamente e agradeceu. Zich olhou para Lubella curvando-se também a fim de receber os seus agradecimentos. Por outro lado, estava tão sem vergonha como sempre. Até bocejou como se a conversa o aborrecesse.
— O que foi, Lubella?
— Haaa! Já que também é minha culpa que eu lhe dei o conselho errado e o senhor Sude também disse que ele te perdoa, acho que devemos resolver este assunto aqui. Especialmente porque não parece mentir que quer “viver uma vida gentil”. Mas espero que pense duas vezes antes de usar a violência e pense se é realmente uma ação boa.
— Compreendo.
— Além disso, por favor, não se esqueça do outro conselho que lhe dei.
— Quer dizer aquele de ajudar os fracos? Mas não gostei dele — encolheu os ombros — Bem, já que foi você quem disse, eu entendo.
— Obrigada.
Depois de terminar a conversa com Zich, Lubella se despediu dos dois de novo e saiu da loja.
— Hm, foi mal.
Talvez fosse porque ela lhe dissera para ajudar os fracos, todavia depois que ela saiu, ele se desculpou desajeitadamente mais uma vez.
— Esqueci de tudo agora, mas se ainda sentir alguma culpa, espero que proteja os fracos, como a senhorita Lubella te disse.
— Ah, ok. Vou tentar.
Ele saiu da loja enquanto balançava as mãos.
Logo, a meia-noite chegou. Uma massa escura de nuvens cobria a lua e as estrelas, então era difícil ver para onde eles estavam indo.
Segurando uma tocha, Hans virou para trás.
— Há algo com que você esteja insatisfeito, senhor?
Zich andou sem dizer nada por um tempo. Parecia que estava pensando profundamente em alguma coisa, e mesmo que Hans não quisesse fazer algo como acordar um cão adormecido, era arrepiante ver ele apenas segui-lo por trás como um fantasma. No final, não teve escolha a não ser abrir a boca.
— Sabe o que Lubella me disse? É realmente verdade?
Embora ele não tenha adicionado o “senhorita” ao nome dela, o servo deixou para lá. Sinceramente, pensou que se o Zich atual adicionasse um honorífico ao nome de alguém, seria mais surpreendente.
— Do que está falando?
— O que ela disse sobre ajudar os fracos.
— Há algo de errado nisso, senhor?
— De alguma forma, não parece certo. Posso mesmo fazer isso? Ela não está confusa sobre alguma coisa?
“Você é o único que está confuso.”
Ele ficou chocado quando descobriu que Zich havia ajudado bandidos a socorrer alguém em necessidade.
— O que você acha que ela errou?
— Eu consigo entender a parte de ajudar os fracos. Mas, de acordo com ela, parece que ela está me dizendo para ajudar alguém como o Sude.
— Não é “parece”, e sim “é”, senhor.
— Sério? — inclinou a cabeça — Bem, já que não tenho outra opção, devo seguir isso? Ainda acho que é a abordagem errada, mas o que ela disse…
Hatt!
Zich parou de andar, e com isso, Hans também.
— O que foi, senhor?
— Ali!
Zich apontou para a frente. Sem perceber, chegaram a uma região quase desabitada. À esquerda, o riacho escorria, enquanto à direita, casas esfarrapadas alinhavam a área. Não havia uma única luz, parecendo que estavam vazias ou seus residentes estivessem dormindo.
O empregado apertou os olhos para ver aonde o seu mestre apontava.
— É… uma pessoa, senhor? — Parou.
A figura obscura parecia ser a forma de uma pessoa. No entanto, era difícil dizer se era um humano, pois os movimentos da sombra eram bizarros.
— Não é um humano.
— Desculpe? Então, o que é, senhor?
Antes que pudesse ouvir a resposta, a figura entrou no alcance da luz da tocha e emitiu um fedor atordoante.
— É um zumbi.