As chamas douradas ardiam ao redor do cabo da espada.
Karakhum, o grande guerreiro, observava a energia de Airen Farreira, que parecia quase etérea demais para ser apenas uma aura, enquanto se lembrava da primeira vez em que encontrou o jovem.
“Eu não sabia o que ele era.”
Não havia outra forma de descrever. Karakhum pôde dizer, com apenas um olhar, que Airen já era um mestre, embora ainda não tivesse desembainhado sua Aura de Espada. Aquela espada era verdadeiramente única. Embora o jovem tivesse passado incontáveis horas treinando, surpreendentemente, ele ainda era fraco de espírito, apesar de suas habilidades.
Karakhum sequer conseguira rir quando o jovem apareceu diante dele, pálido e ofegante, depois de derrotar alguns ladrões. Mas o que o surpreendeu de verdade foi o que aconteceu depois.
— Não é uma questão de eu conseguir ou não. É uma questão de dever ou não. E eu devo. É pelo Khubaru, meu professor e amigo.
O jovem havia desembainhado sua espada com orgulho diante dele, o maior guerreiro dos orcs e um dos lutadores mais poderosos do continente.
Isso não aconteceu porque Airen estava orgulhoso de suas habilidades. Fiel às suas palavras, Airen estava pronto para enfrentar o que fosse necessário se fosse por seu amigo.
“Aquela determinação de ferro, que não vacila sob nenhuma pressão…” refletiu Karakhum.
Embora o jovem pudesse ser tão dócil quanto um garoto do campo quando precisava ferir alguém, ele era tão determinado quanto os heróis das antigas lendas quando precisava proteger alguém.
Talvez não fosse surpresa que Karakhum se sentisse intrigado por humanos assim.
Agora, Airen Farreira havia evoluído novamente. Desta vez, ele não se tornara apenas parecido com um herói; ele havia, de fato, se tornado um jovem herói. Karakhum conteve o riso enquanto observava o espadachim humano, que era a imagem viva de um herói jovem.
“Magnífico…”
Era inspirador. Não era apenas a esgrima que o jovem havia melhorado.
Embora vivessem em um período de paz jamais visto na história, o continente era tão caótico quanto antes. Embora os países não mais guerreassem abertamente, pequenos conflitos corroíam cada nação. Agora que o diabo havia desaparecido, vilões piores, como o grupo de ladrões orcs que ele encontrara no mês passado, assolavam as pessoas.
Apesar dos desgraçados devastando tudo, a maioria estava ocupada enchendo os próprios bolsos.
No entanto…
Ali estava um homem que anunciava que usaria sua espada em benefício dos outros. Ali estava um humano que declarava que trabalharia pela felicidade dos demais.
Enquanto outros poderiam chamar sua ambição orgulhosa de tola, constrangedora ou patética, Karakhum achava que seus olhos brilhavam mais que o sol aquecendo os campos pela manhã. Contudo, ele não estava isento de dúvidas.
— Eu gostaria de dizer… — começou Karakhum lentamente após um longo silêncio.
— Quero elogiar sua coragem por dizer que trilhará o caminho do herói.
— Obrigado — respondeu Airen.
— Mas me pergunto… se você é um recipiente digno de se tornar um herói. Você pensou sobre o peso da responsabilidade que um herói deve carregar antes de dizer tais palavras…?
— Existe um velho ditado. Primeiro, é preciso purificar a mente e o corpo. Depois, é necessário cuidar da família antes de governar um país. Finalmente, é preciso trazer paz ao mundo.
Airen assentiu. Embora inexperiente, as palavras de Karakhum não eram desconhecidas. Afinal, era um ditado bastante conhecido. Airen aguardou em silêncio enquanto Karakhum continuava.
— É claro que não quero que esse velho ditado defina a todos, mas espero que entenda o quão difícil é o caminho do herói que você menciona. Você não precisa apenas governar a si mesmo, mas também assumir a responsabilidade sobre inúmeras vidas no continente — continuou Karakhum.
O guerreiro enfatizou como cada ação, escolha e palavra de um herói deveriam ser tomadas com extremo cuidado e como ele precisava ser firme em seu credo quando as linhas entre o bem e o mal eram nebulosas.
Ah, e como o público era cruel quando um herói inevitavelmente cometia um erro, e como eles precisavam ser fortes para suportar tal dificuldade!
Airen não deixou escapar nenhuma das palavras. Como Karakhum dissera, ele nunca assumira a responsabilidade por ninguém, enquanto pessoas como o chefe da tribo haviam vivido suas vidas inteiras carregando tais fardos pesados.
“Um título que não se pode reivindicar apenas por ser forte ou bondoso…” pensou Airen enquanto Karakhum apontava algo que ele ainda não havia considerado.
Karakhum assentiu levemente. Não tinha a intenção de repreender o jovem. Pelo contrário, desejava que Airen mantivesse esse sentimento no futuro.
No entanto, para se tornar um verdadeiro herói, o jovem precisaria pensar e se esforçar ainda mais.
Olhando para as nuvens que passavam, ele voltou-se para Airen e disse.
— Pense longa e friamente sobre si mesmo. Pergunte-se se você não está apenas sobrecarregado pelas memórias de sua vida passada… Pense em silêncio se realmente deseja perseguir o que nem mesmo o maior espadachim, um rei ou um grande chefe como eu ousou buscar…
Karakhum soltou um longo suspiro. Ele estava prestes a devolver o machado duplo aos elementos quando Airen Farreira, que estivera ouvindo obedientemente, de repente ajustou sua postura, com sua espada de aura ardendo em um dourado radiante.
Karakhum franziu a testa.
— O que você está fazendo? — perguntou.
— Os espadachins que conheci me disseram — respondeu Airen com um leve sorriso, imaginando diversas pessoas, Lance Patterson, o Diretor Ian, Brett Lloyd e Judith.
Era isso mesmo. Verdadeiros espadachins falavam através de suas lâminas, e não com palavras.
Naquele momento, Airen Farreira era tão espadachim quanto eles.
— Um espadachim fala com sua espada — disse ele.
— Não estou sobrecarregado pelas memórias de minha vida passada. Talvez elas tenham vindo no momento certo para me dar o último empurrão, mas estou certo de que teria escolhido este caminho de qualquer maneira — continuou Airen.
— Você… — murmurou Karakhum.
— Eu mostrarei a prova. Duele comigo por mais um pouco.
As chamas ardentes crepitavam ao redor da espada larga.
Karakhum riu ao ver o espadachim humano marchando com determinação. O jovem, embriagado por sua própria paixão ardente, avançava com ousadia, diferente de seu comportamento usual.
— Muito bem, vou lhe dar uma surra! — gritou Karakhum.
Ele estava um pouco irritado. Mas, principalmente, estava alegre e empolgado. Ergueu o machado novamente, pressionando Airen com ainda mais ferocidade.
Crash!
Crack!
Craaaack!
Gorha sorriu, divertido, enquanto observava a combinação engraçada de um chefe aposentado e um jovem espadachim que queria ser um herói.
No dia seguinte, Airen acordou cedo e foi ao campo de treinamento após lavar o rosto.
Ele franziu a testa. Seu duelo com Karakhum havia sido intenso. Embora tivesse recebido tratamento, seu corpo inteiro doía. Mas ele não podia evitar. Podia aceitar tudo o que fora dito, exceto quando Karakhum sugerira que ele estava apenas sobrecarregado pelas memórias de sua vida passada.
Sua determinação por sua família e amigos, que trazia o fogo dentro dele, queimaria para sempre a partir de agora. Airen tinha certeza disso.
“Mas eu preciso levar a sério o outro conselho de Karakhum”, pensou.
Enfrentar um demônio não exigia muito. Tudo o que precisava fazer era derrotar o inimigo. Afinal, o certo e o errado eram claros nesse caso.
Porém… se ele tivesse que intervir em áreas mais nebulosas, como um conflito entre humanos… Seria capaz de tomar a melhor decisão sem hesitar?
Se qualquer escolha significasse ferir alguém, conseguiria suportar o rancor e a culpa que isso traria? Conseguiria trilhar o caminho espinhoso como se nunca tivesse sido ferido…?
“Eu ainda não posso…”
Airen se lembrou do que aconteceu nas Montanhas Alhaad. O que ocorreu não foi certo. Contudo, foi o equilíbrio encontrado entre muitos interesses.
Airen nunca encontrou uma resposta clara para aquilo. Talvez ela nem existisse, e alguém tivesse de se contentar com sua própria opinião.
Se ele queria encontrar sua própria resposta, sem hesitar em circunstâncias como aquela, precisaria estabelecer uma crença mais forte. E para isso, precisava de mais experiência, conhecimento e esforço.
“Ignet deve ter trabalhado assim desde muito tempo atrás”, pensou Airen, recordando Ignet Cresensia, a capitã dos Cavaleiros Negros, que deixou uma forte impressão enquanto ele refletia sobre o credo.
Diferente dele, ela buscava ser uma rainha. Mas eram semelhantes no sentido de que ambos precisavam encontrar suas próprias respostas em meio a uma infinidade de situações, e cada decisão trazia consequências pesadas.
Ignet não era a única. Tarakhan, o chefe tribal, o Diretor Ian, e qualquer um que liderasse os outros vivia sob fardos semelhantes.
Airen percebeu o quão fácil e despreocupada sua vida havia sido.
— Eu serei capaz de fazer isso…? — murmurou ele.
Era bom ter finalmente compreendido o que sua espada era, mas agora ele se sentia mais pressionado do que nunca.
Talvez fosse porque, pela primeira vez em sua vida, ele tinha um sonho. Ele temia não alcançar seus objetivos ou ser comparado aos outros. Airen fitou o chão, abatido pela primeira vez.
— O que você quer dizer com ‘ser capaz’? — perguntou Brett Lloyd, aproximando-se de Airen.
Airen olhou para Brett antes de falar.
— Brett.
— O quê?
— Posso conversar com você sobre uma coisa?
— Hã?
— Hã? Por quê?
— Quero dizer, eu também estava prestes a perguntar algo.
— Ah, é mesmo?
Airen ficou surpreso. O Brett Lloyd que ele conhecia era forte e calmo, um exemplo perfeito de nobreza. Antes, Airen o achava difícil de lidar, pois ele era um tanto orgulhoso. Agora, encontrava orgulho no amigo, e os dois eram bons companheiros.
E imaginar que Brett Lloyd queria o conselho dele…
“Ele está me pedindo conselhos ao invés de pedir a qualquer outra pessoa? Não ao Khubaru?”
Por mais interessado que Airen estivesse, a história de Brett teria de esperar.
— Você perguntou primeiro, então vá em frente — convidou Brett.
— Certo — assentiu Airen, antes de explicar suas ambições, o que Karakhum lhe dissera e seus pensamentos atuais.
Claro, Brett não zombou do sonho de Airen. Pelo contrário, sentiu que seu amigo era mais adequado para aquele caminho do que qualquer outra pessoa. Mesmo sem as memórias de sua vida passada, Airen eventualmente teria chegado à mesma conclusão. Assim, o filho mais velho da Casa Lloyd queria encorajar seu amigo.
Ele também sentiu raiva.
Ignet, Tarakhan, Ian. Essas eram pessoas que carregavam grandes responsabilidades. Brett balançou a cabeça enquanto Airen hesitava ao se comparar com eles.
— Que insolente — disse Brett.
— Hã? O que quer dizer? — respondeu Airen.
— Estou falando de você.
— Mas por quê…?
— Pense em quem você está mencionando. Você só fala dos mestres espadachins ou daqueles ainda mais poderosos. Se você diz que se sente pequeno em comparação, o que isso me faz parecer, que nem sou mestre nem herói? — questionou Brett.
— Não foi isso que eu quis dizer… — protestou Airen.
— Silêncio. Cala a boca.
Calando Airen com palavras afiadas, Brett balançou a cabeça, irritado.
Airen não estava apenas preocupado consigo mesmo, mas também com Judith. Vê-lo tão abatido, apesar de ser um dos melhores entre eles, o deixava indignado.
Mas Brett também entendia seu amigo. A menos que alguém fosse o próprio deus, era impossível não se comparar aos outros e se sentir inferior.
“É até surpreendente que isso não tenha acontecido antes”, pensou Brett.
Talvez ele devesse acolher essa mudança em seu amigo. Airen estava muito melhor do que na época de Krono. Naquela época, ele parecia uma marionete sem emoções. Agora, ele parecia mais com um jovem de sua idade.
“Além disso, eu sou um especialista nesse assunto”, pensou Brett, assentindo.
Ele tinha certeza de que tinha muito a dizer ao amigo, como alguém que ficou frustrado com Ilia e Airen na academia.
— Airen — chamou ele.
— Hã? — respondeu Airen.
— Lembra de como voltei para casa abatido quando estávamos na Academia?
— Ah, hum… a época em que a Judith te bateu?
— Quieto.
— Desculpa.
— De qualquer forma… deixe-me contar sobre aquela época — disse Brett Lloyd, olhando para cima, como se recordasse do passado distante.
Airen Farreira escutou atentamente.