Volume 01 – Elegia para um Imortal
1°Juramento: Sangue e Ferro
— Olá, caro amigo.
— … onde eu estou? O que está acontecendo?
— Calma lá. Não entre em pânico. Está tudo bem.
— … o que está acontecendo? Por que eu não consigo ver nada?
— Eu já vou te contar, mas preciso que você me escute. Prometo responder a todas as suas perguntas, então tente ficar calmo, tudo bem?
— … tá-tá bom.
— Ouça. Você está morto.
— … quê?
— Você está morto. Você não tem um corpo físico mais. É por isso que você não consegue ver ou se mover.
— … que tipo de piada maluca é essa?
— Me desculpe, amigo, mas não estou brincando. Se eu estivesse, você estaria rindo. Eu sou hilário.
— Mas o quê…?
— Só relaxe por um momento e pense no assunto. Você deve se lembrar da sua morte.
— Mas… eu…
— Você se lembra?
— Eu… sim… eu me lembro… eu…
— Não se preocupe. Está tudo bem. Eu estava lá quando você morreu. Eu sei o que aconteceu.
— Eu estou… morto mesmo?
— Sim.
— … isso significa… que isso é… algum tipo de pós-vida?
— Mais ou menos. Você não chegou nesse ponto ainda.
— … o que você quer dizer com isso? Por que não? Isso é… porque eu…?
— Não, não é nada do tipo. Tudo está perfeitamente normal. Eu só te acordei um pouco mais cedo, é só isso. Porque antes de você prosseguir, tenho uma proposta para você.
— Proposta…? Quem é você?
— Eu sou chamado de algumas coisas, mas provavelmente você me conhece melhor como ceifador. Você sabe. Do tipo sinistro.
— Tá porra…?
— Eu guio e protejo almas conforme elas fazem sua jornada até o pós-vida. Ou esquecimento. Seja qual for.
— Você… não sabe?
— Claro que não. Eu sou só um barqueiro.
— Ah… isso é… decepcionante…
— Ei. Também não gosto disso. Na verdade, não fala mais disso. Eu não preciso de você me lembrando dos meus defeitos.
— Éeee, desculpa…
— Normalmente, você nunca saberia que eu estou aqui com você, mas eu tive que perturbar você para te fazer uma proposta.
— … uma proposta.
— Certo. Então, como um ceifador, eu tenho o poder para manter um servo, alguém que irá me ajudar com várias coisas.
— Servo…? Você quer que eu seja seu servo?
— Servo, parceiro, aliado, amigo, como você quiser chamar, mas sim, é basicamente essa a ideia. Eu reviveria seu corpo e você poderia viver de novo, contanto que me ajude. Você morreu cedo demais. Eu pensei que você ia querer uma segunda chance, uma chance para, quem sabe, viver uma vida mais realizada.
— Mais realizada…?
— Estou errado?
— Bom… não… mas… você consegue mesmo fazer isso?
— Sim. Ninguém descobriu seu corpo ainda, então não há problema.
— Então… você podia, sei lá, me transformar em um bilionário ou algo do tipo na minha vida nova?
— O quê? Não, claro que não. Não é assim que a banda toca.
— Então de que merda você estava falando agora?
— É tipo assim: seu corpo está morto, agora, eu consigo reviver ele e recolocar a sua alma. Eu não posso te dar um corpo novo em folha e uma tonelada de grana. Isso seria loucura. Eu sou um ceifador, não a porra de um gênio.
— Ah… então eu estaria vivendo a mesma vida de antes…
— Quase. Bom. Mais ou menos. Quero dizer. As coisas podem se complicar um pouquinho.
— … de que diabos você está falando?
— Eu não iria te reviver por nenhuma razão, claro. Eu iria querer que você me ajudasse, como eu disse.
— … ajudar com o quê?
— Salvando vidas.
— … hein?
— Estou nesse mundo há milhares de anos, levando de barco as almas através dessa fenda entre reinos. E eu consigo observar os vivos, mas não consigo interagir com você até você morrer. Então, como você pode imaginar, vejo muita coisa horrível acontecer no seu mundo, coisas que eu gostaria de poder fazer algo a respeito. Mas obviamente, não posso. Não sozinho. É aí onde você entra. Eu encontraria as pessoas que estão prestes a morrer e, então, você viria e salvaria elas.
— Uh… uou…
— Uou?
— É só que… quero dizer… você está falando sério?
— Sim.
— Mas… uh… isso parece incrível e tudo mais, porém… eu não acho que conseguiria salvar alguém…
— Claro que conseguiria. Com a minha ajuda, você vai ser imatável.
— I… matável…? Quer dizer, tipo, imortal?
— Sim. Você seria meu servo morto-vivo, então naturalmente, se você morrer, eu só te reviveria de novo.
— Uau… morto-vivo…
— Está interessado em tentar?
— Uh… não sei. Parece meio… insano…
— Ei. Isso é um pouco rude.
— Você disse… que eu seria seu servo?
— Sim.
— … o que acontece se eu te desobedecer?
— Se você decidir que não quer mais me ajudar, então eu simplesmente libertaria sua alma e te deixaria morrer.
— Você me mataria…
— Ei, você já está morto. O que você tem a perder?
— … nesse caso, parece um pouco bom demais para ser verdade.
— Não seria permanente. Se você decidir mais tarde que não gostou do acordo, eu vou encontrar outra pessoa e te deixar voltar para o mundo dos mortos.
— Como vou saber que você não está mentindo?
— Uh. Eu suponho que você não vai. Você vai ter que tomar um certo risco. O mesmo que eu estou tomando com você.
— Eu não sei…
— Bom, eu odeio te apressar, mas você pode querer decidir antes que alguém descubra seu corpo morto. Isso pode te causar problemas se pessoas descobrirem antes de você voltar à vida.
— Eu não disse sim ainda…
— Eu estou ciente. Por favor, se decida. Estou impaciente.
— Tá-tá bom… eu vou tentar. Não pode ser tão ruim assim…
— Excelente. Já vou começar então.
— … o que você vai fazer?
— Só segure suas pontas. Isso pode ser um pouco chocante.
— Espera um pouco? O quê? Não há nada aqui… mas o que…? Ei!
———
Hector acordou com uma encolhida. Um lampejo de dor passou por seu corpo, mas sumiu depois de um instante. Ele piscou seus olhos para clarear sua visão turva e se sentou.
Era o banheiro, ele viu, se lembrando. Era aqui onde ele havia morrido, neste banheiro pequeno, de azulejos não tão brancos. Pelo menos, era o que ele pensava. Obviamente, ele não estava morto.
O ventilador no teto rodava com um zumbido, ainda, assim como antes. Ele se lembrava desse som, se lembrando de pensar como isso seria a última coisa que ele ouviria, se lembrando como isso o fazia se sentir ainda mais patético em seus momentos finais.
Mas agora ao ouvir esse som de novo, o zumbido chato, ele não estava certo do que pensar. Quase parecia um barulho diferente apesar de não ter mudado em nada.
Sua camisa estava molhada, Hector percebeu, e ele olhou para as manchas carmesins em sua camisa branca de tecido fino. Ele se levantou e viu o chão, uma piscina de seu próprio sangue.
Ele coçou sua cabeça.
— Hein…
Um espelho o cumprimentou, seu rosto refletido através de uma camada leve de sabão enevoado. Tudo parecia o mesmo. A pele negra, a cabeça raspada, o olhar castanho, sombrio, tudo dele. De algum jeito, parte dele esperava ver outra pessoa.
Seus olhos se voltaram para a pia, para a lâmina de navalha em cima dela. Parecia um jeito estranho de morrer, de repente, por uma coisa tão pequenina, um pedacinho de metal afiado. Mas então, ele percebeu que os cortes longos, verticais em seus braços, que ainda estavam lá, não doíam nada. De fato, ele nem conseguia sentir. Ele parecia capaz de mover seus braços sem problema, mas eles estavam completamente entorpecidos.
Olá de novo. — Veio uma voz e ele se virou para ver uma figura aparecer perto dele, sentada lá… flutuando. Um esqueleto, parecia ser, seus ossos emanando branco por trás da mortalha mais preta que ele já viu. Uma foice jazia em sua mão, a lâmina pendendo para baixo em seu corpo.
Hector meio que só ficou encarando, com seus olhos arregalados.
Nenhum oi de volta, hein? Bom, tudo certo. — A mandíbula do esqueleto se moveu com suas palavras, porém Hector não conseguia entender como.
Depois de um momento, ele conseguiu articular suas próprias palavras.
— Você é…
O ceifador que estava falando com você, sim. Prazer em te conhecer. Oficialmente, pelo menos.
— Você parece… você parece que nem na minha imaginação. — Ele piscou algumas vezes. — Isso realmente está acontecendo…?
Ah, certo. Minha aparência. — Ele deu um dar de ombros esqueletal. Não importa o que você esteja vendo, neste exato momento, não é exatamente como eu me pareço. Na verdade, eu não pareço com nada em particular.
— … o quê?
Seu cérebro forma uma imagem do que eu devia parecer e projeta isso na minha presença. Aparência é algo para sua realidade física, onde eu não existo.
— Eu… não entendo…
Ah, bom, não é nada demais. Ah e antes que eu me esqueça… — O ceifador flutuou mais perto e esticou uma mão óssea em sua direção.
Hector se afastou um pouco, mas a mão ainda encontrou seu ombro. E de repente, ele sentiu seus braços começarem a queimar. Ele olhou para baixo e viu as feridas incharem e se apertarem. Um gemido escapou de seus lábios enquanto ele assistia as feridas se fecharem, deixando apenas rastros de sangue para trás, ambos ainda molhados e já secos. A dor passou depois de alguns momentos.
— Mas que porra…? — Ele traçou seus braços onde os cortes estavam, afastando o sangue. Nem mesmo uma cicatriz restava. E mais ainda, seus braços não estavam mais entorpecidos.
Acho que seria bacana limpar todo esse sangue, — o ceifador disse, gesticulando para o chão. Eu consigo restaurar seu corpo, mas quando o sangue sai, não consigo fazê-lo voltar. O mesmo vale para seus membros, se eles forem cortados ou algo do tipo. Eu não consigo religar coisas. Só fazer eles recrescerem.
Ele estreitou um pouco seus olhos.
— Recrescer…?
Eu consigo te reviver, independente da seriedade de suas feridas. Mesmo se o seu corpo inteiro for destruído, consigo recriar ele de novo. É assim que meu poder funciona. Contanto que eu mantenha uma conexão com a sua alma, consigo ressuscitar o corpo físico que acompanha ela.
Ele não estava certo do que dizer.
É uma pena, sério. Se eu conseguisse criar um corpo do zero, então eu não precisaria da ajuda de outra pessoa. Eu podia só fazer um corpo para mim e bancar um super-herói ou algo do tipo.
— Uh… en-entendo… eu acho.
Mas a muito mais que eu deveria explicar antes de nós começarmos a salvar o mundo e coisa e tal, e você devia mesmo limpar essa bagunça antes de alguém ver. A menos que você esteja planejando começar as coisas revelando seu segredo para outra pessoa.
— Éee, certo… — Ele se moveu em direção a porta e, então, pausou estranhamente. — Uh…
Talvez um esfregão seria útil?
— Cer-certo… — Ele abriu a porta e foi embora. Uma passagem estreita o aguardava e ele não conseguia não encarar ela por um momento. Um lugar tão simples. Paredes de um branco cremoso e carpete marrom, simples. Ele deve ter visto esse lugar milhares de vezes, mas de algum jeito parecia diferente. Tudo parecia, na verdade. Seus tênis arranhados, suas calças largas, pretas, até a luz do teto do corredor e a mariposa voando ao seu redor, tudo era uma lembrança dele mesmo, de quem ele era, da sua incerteza repentina sobre se ele era ou não a mesma pessoa ainda.
Ele se certificou de fechar a porta do banheiro atrás dele e desceu as escadas. Seus pais estavam juntos na sala, assistindo televisão na sob a luz fraca de uma lâmpada. Eles nem se incomodaram de olhar para ele enquanto ele ia para a cozinha, apesar dele estar certo de que eles ouviram seus passo. Mas então, ele supôs que era melhor que não o vissem. Explicar de onde veio todo o sangue em sua camisa seria difícil. Rapidamente, ele pegou o esfregão perto da geladeira.
Não esqueça de um balde, — veio a voz sem som do ceifador e Hector quase deixou cair o esfregão, jogando ele de uma mão para a outra por alguns momentos. Alguns panos ajudariam também.
Ele olhou ao redor, piscando. A cozinha ainda estava vazia. Ele arriscou um sussurro.
— Onde está você…?
Houve uma pausa e Hector meio que cerrou seus olhos enquanto esperava.
Isso é uma via de mão dupla, você sabia. Diga algo na sua cabeça e eu vou te ouvir. Outra pausa. Na verdade, você tem que pensar algo explicitamente. Concentração é o que solidifica os pensamentos em nossas mentes e os torna compreensíveis.
— Uh… oh … tipo assim? — Ele pensou, deixando seu olhar vagar pelo teto.
Sim. Fácil, não?
Éee… claro… — Ele pegou as outras coisas que o ceifador mencionou e fez seu caminho de volta pelas escadas sem chamar a atenção dos seus pais e começou a esfregar o chão do banheiro. Com cada esfregada, o carmesim diminuia, deixando um resíduo rosa conforme a piscina de sangue se acumulava.
Ele não estava certo quanto sangue havia aqui, mas já começou a manchar o piso, então ele imaginava que algumas horas pelo menos devem ter se passado.
Você ficou quieto, — o ceifador disse, fazendo Hector olhar para cima. Eu pensei que você teria mais perguntas para mim.
Ele encarou o sangue novamente.
— … eles não notaram.
O quê?
— Meus pais — ele disse, torcendo o esfregão em cima do balde. — Eles não notaram que eu morri.
Houve uma pausa notável.
Você se trancou num banheiro. É provável que levaria um tempo até eles te descobrirem.
— Quanto tempo levaria…
O ceifador ficou quieto depois disso. Não foi até Hector quase terminar de lavar o chão que a conversa voltou.
A propósito, eu sou Garovel. Meu nome é Garovel.
Hector se sentou no canto da banheira e olhou para o esqueleto flutuando novamente.
— Entendi. — Foi tudo que ele disse.
Garovel inclinou sua cabeça.
Não gosta muito de conversar, hein? Você falou mais quando estava morto.
— … desculpe. Eu não… quero dizer… é.
Bom, não se preocupe com isso. Não há porquê apressar as coisas. — Garovel flutuou mais perto do espelho e Hector percebeu que o ceifador não tinha um reflexo.Você não parece ser do tipo curioso, então eu acho que vou só explicar. Me pare se tiver uma pergunta.
Hector esperou.
Você e eu estamos conectados agora. Sou eu quem sustenta sua vida agora. Biologicamente falando, seu corpo está vivo de novo, mas eu sou a única coisa que te mantém preso no seu corpo. Sua alma, sua consciência, seu ego, como você quiser chamar, eu sou aquele que mantém sua conexão com esse mundo agora. — O ceifador pausou por um momento, atencioso talvez. Eu imagino que possa soar como uma coisa ruim. Ter sua alma controlada por outro, é isso, mas há na verdade algumas vantagens fantásticas para essa coisa toda. A primeira, claro, a habilidade de restaurar seu corpo, mas já falei sobre isso. E eu acredito que você já teve um vislumbre da segunda maior vantagem. Que é, a habilidade de continuar se movendo, mesmo depois do seu corpo estar tecnicamente morto.
Isso tem haver com o seu cérebro. — Garovel cutucou seu crânio desnudo com uma falange longa. Em vez de depender de sangue e carne para conseguir energia, seu cérebro agora depende completamente de mim, em grande parte porque eu agora moro no seu cérebro, por assim dizer. Mas, em termos desse mundo físico, seu cérebro agora é auto-sustentável. Mesmo se, digamos, você sangrar até a morte ou seu coração parar de bater ou até mesmo se você parar de respirar, seu cérebro vai continuar de boas. — O ceifador parou de novo. Claro, não é tão simples como parece, já que o cérebro é uma coisinha bem complicada. Eu fechei todos os tipos de sinais que senão enganariam seu cérebro a pensar que ele precisa desligar devido a falta de sangue ou glicose ou o que você tem, mas você não precisa se preocupar muito com isso. Estou cuidando de tudo.
Hector tentou dizer algo, mas não conseguia encontrar as palavras, então ele só ficou encarando com uma sobrancelha levantada.
O ceifador inclinou sua cabeça para ele.
Isso fez sentido?
Ele meramente assentiu.
Tudo certo então. A terceira vantagem é, obviamente, ter minha personalidade radiante por perto sempre que você precisar de mim.
Ele não conseguia não dar uma risadinha.
Porém, é mais que só minha personalidade, como um ceifador da morte, eu tenho a habilidade de sentir sempre que alguém está prestes a morrer. À beira da morte por assim dizer. Colocando em miúdos, eu percebo uma aura de fim iminente sobre a alma de alguém. É bem dramático. Especialmente porque eu não consigo fazer nada para ajudar eles. Você, por outro lado, pode. Então, sempre que eu sentir essa aura ao redor de alguém, quero que você tente salvar essa pessoa. Entendido?
— Éee, sim… — Ele assentiu de novo.
Você devia saber, entretanto, que eu sempre precisarei de você para isso. Meu propósito em te reviver é para que você possa me ajudar a salvar vidas. Então, não importa como a sua vida possa mudar – seja um novo trabalho, se casar, ter filhos ou qualquer outra coisa – se algum dia você não conseguir mais me ajudar, então eu vou ter que liberar sua alma e encontrar outra pessoa.
— Tá-tá bom… — Ele cerrou seus olhos. — Mas… como eu poderia me tornar “incapaz” de te ajudar? Quero dizer… duvido que eu estaria ocupado demais com qualquer coisa para não poder salvar a vida de alguém…
Bom você falar isso, mas essa decisão nem sempre está nas suas mãos. Por exemplo, se o seu cérebro acabar em uma jarra, você não conseguiria salvar ninguém. E eu não conseguiria te libertar. Bom. Talvez se for uma jarra fraca. Quero dizer, uma jarra MUITO fraca. Não estou muito certo.
Ele piscou seus olhos algumas vezes.
— Éee… o que? Por que meu cérebro acabaria dentro de uma jarra?
Sei lá. Só dando um exemplo.
Esse exemplo era específico demais, Hector sentiu.
— Você… você vai me pedir para lutar contra um cientista louco ou algo do tipo?
Oh, hmm. Eu não estava planejando, mas não consigo dizer que seria impossível também. Quem sabe o que o futuro trará, certo?
— Éee… certo… — O olhar de Hector vagou em direção ao chão por um momento, então para a pele perfeita em seus braços de novo. — Mas eu tenho uma pergunta…
Que é?
— Se… se você consegue… ressuscitar pessoas assim… então… por que você não… você sabe… faz isso… com todo mundo.
Garovel hesitou.
Uh. Quê? Não consigo te entender. Para de pausar tanto quando você fala.
— Agh… — Ele tentou de novo. — Se você consegue ressuscitar pessoas, então… por que você não só… ressuscita todo mundo.
Você ainda está pausando. Te falei para parar com isso.
— Merda, eu estou… tentando…
Ah, bom. De qualquer jeito, consegui te entender da segunda vez.
— Então responde minha pergunta, poxa!
Ei, você não pausou dessa vez. Bom trabalho.
— Eu queria que você tivesse um corpo para eu poder te estrangular…
Mas é uma pergunta importante. Obviamente, se eu pudesse manter mais pessoas vivas, faria isso. Não sei quanto a todo mundo, mas sim. O problema é, eu só consigo manter uma conexão estável com uma alma de cada vez. Se eu tentasse manter uma conexão com uma segunda pessoa, então minha energia começaria a se dissipar, o que acabaria me exaurindo ou destruindo. E se uma dessas coisas acontecer comigo, então as pessoas conectadas comigo teriam suas almas arrancadas de seus corpos ainda vivos, o que resultaria ou numa morte cerebral ou num ataque psicótico. E um corpo com uma consciência quebrada pode se tornar uma coisa bem monstruosa, pra não dizer o contrário.
Ele jogou sua cabeça para trás.
— Você quer dizer… eles… tipo… começam a matar pessoas aleatórias?
Entre outras coisas horríveis, sim.
— Uou… entendi. — Ele dobrou seus braços magros e seu rosto se contorceu um pouco. — Mas se esse é o caso, então.. por que você me escolheu para esse trabalho?
Bom, eu precisava escolher alguém. Eu precisava de um servo e booom, você apareceu.
— É isso…? Foi só uma coincidência você ter me escolhido…?
Na maior parte.
Hector olhou para o ceifador.
— E o que significa isso? “Na maior parte”?
Eu tento não escolher assassinos e pessoas do tipo para esse trabalho, então sim, há algum julgamento envolvido. E mais ainda, eu não escolhi você. Eu te pedi. Foi você que concordou.
— Mas… uma segunda chance como essa… quem em sã consciência recusaria sua oferta?
Alguém que só quer morrer.
Com isso, Hector hesitou. Por um tempo, ele meramente ficou sentado lá, deixando seu olhar cair de Garovel para o chão.
— Mas… — Ele finalmente disse, — eu me matei…
Eu sei. Assisti você fazendo isso.
— Então… então por que você não escolheu outra pessoa? Alguém que morreu em um acidente ou algo do tipo? — Ele respirou ofegante. — Alguém que mereça mesmo uma chance como essa…
Se você realmente quisesse morrer, então não teria concordado em me ajudar quando eu te pedi.
Enquanto ele ficava sentado lá, sua cabeça desceu para se apoiar entre suas duas mãos.
— Mas… — Ele suspirou.
Antes de você morrer, eu assisti você por um tempinho.
Ele olhou para cima.
— O que…?
No momento que você decidiu se matar, eu consegui sentir a aura da morte ao seu redor. — As sombras dos olhos faltando de Garovel pareciam abruptamente mais atentas nele. É assim que funciona. Eu sinto a morte quando a alma fica diretamente em perigo. Se fosse para você ser acertado por um ônibus, eu não teria sentido sua morte até você estar na frente da coisa. Situações como essa são uma bosta. Mas para pessoas como você, pessoas que querem se matar, eu sinto a morte quando a decisão é tomada em sua mente.
Ele piscou.
— Então… você ficou…
Sim. Eu fiquei esperando por quase sete meses. É o tempo que demorou para você fazer isso. — Garovel deu de ombros levemente. Já vi gente que demorou mais tempo, mas definitivamente no topo da lista. Eu checava você de vez em quando, talvez duas ou três vezes na semana. Eventualmente, comecei a me perguntar o motivo de você estar deixando as coisas se arrastarem tanto, o porquê de você não acabar logo com isso. E, então, eu finalmente descobri.
Seu olhar voltou para o chão e seus olhos se fecharam enquanto ele ouvia.