Nick observava enquanto os dois homens recobravam lentamente a consciência.
A silhueta de três cabeças ainda ria e chorava alto enquanto os dois se levantavam.
Naturalmente, como suas Barreiras haviam sido rompidas, a Zetose deles havia parado.
Felizmente, Zephyx mais do que suficiente estava sendo gerado naquela sala, permitindo que seus corpos reiniciassem rapidamente a Zetose.
Um momento depois, as luzes se acenderam novamente, e Serna finalmente conseguiu voltar a enxergar.
Mesmo sendo a segunda vez que aquilo acontecia, ela ainda sentia medo sempre que as luzes se apagavam.
Mas quem poderia culpá-la? Afinal, a escuridão representava sofrimento interminável para todos os humanos.
Nunca havia um momento na vida de alguém em que a escuridão não estivesse associada a um sofrimento horrível.
A lógica não ajudava contra um medo tão primordial.
Os dois homens pareciam confusos e olharam ao redor.
— E então? — perguntou Serna ao Diretor Executivo da Caixa Vertigem.
— Hã? — perguntou o Diretor Executivo.
— Qual é sua resposta? — ela questionou.
O Diretor Executivo levou a mão à cabeça. — Desculpa, qual era a pergunta mesmo?
— Você está disposto a suspender qualquer combate dentro dos limites da cidade pelos próximos três meses? — perguntou Serna, com um pouco de irritação. — Queremos ter um tempo para elaborar um conjunto de regras que funcione para todos. Karl já concordou.
Ao lado, Karl também balançou a cabeça em confusão.
Ele não se lembrava de ter concordado com aquilo.
Mas, quanto mais pensava, mais aquilo lhe parecia familiar.
— É, claro — disse Karl. — Precisamos de regras mais claras para a batalha. Podemos estar nos matando, mas tudo isso é só negócios. De que adianta vencer essa guerra se o vencedor acabar com uma cidade destruída? Eu já tinha dito isso antes!
Martin também começou a ‘se lembrar’ da conversa e de como Karl havia sido insistente em relação à trégua.
Em sua memória, Karl parecia muito desesperado por um cessar-fogo temporário.
Martin também se lembrava de ter se oposto a Karl.
— Isso parece favoritismo — disse Martin. — Estamos em uma posição vantajosa neste momento, e justo agora você vem pedir uma trégua?
Serna franziu o cenho, irritada, enquanto olhava para a figura gigantesca de três cabeças entre os dois.
A cabeça que ria soltava gargalhadas enquanto a cabeça que chorava mergulhava num desespero ainda maior.
Enquanto isso, a cabeça neutra apenas suspirava, incomodada. — Eu avisei que isso podia acontecer. Depois da transferência, as memórias deles se geram automaticamente com base no padrão mais óbvio e direto.
— Ele vê o outro como inimigo e automaticamente pensa que tudo o que o outro quer é algo que ele não quer, o que faz com que acredite que sempre foi contra essa opção.
— Não tem nada que eu possa fazer.
Serna manteve sua irritação oculta e olhou para Martin.
— Como assim vocês estão em posição vantajosa? — ela perguntou.
— Acabamos de vencer uma batalha — ele respondeu.
Serna respirou fundo e se preparou para uma longa discussão.
Ela só queria que aquilo terminasse logo.
Nick permanecia dentro de um compartimento oculto na parede.
Enquanto os Extratores não conseguiam ver o Espectro, eles conseguiam ver Nick.
Nick continuava observando o Espectro com sua percepção, enquanto Serna e Martin discutiam.
Aquele Espectro era realmente aterrorizante.
Parecia que três mulheres altas haviam sido fundidas em um único corpo.
Era um Demônio Intermediário, e crescia em poder ao transferir sensibilidade emocional e com o sofrimento causado por esse desequilíbrio emocional.
Ele podia extrair a sensibilidade emocional de uma pessoa e injetá-la em outra.
Em poucos dias, ambas as pessoas afetadas mudariam drasticamente.
Isso transformaria uma pessoa em um louco instável, que sentia emoções com intensidade absurda.
Uma piada levemente engraçada os faria rir intensamente.
Uma leve crítica os deixaria espumando de raiva.
Uma história triste os jogaria num ciclo completo de luto.
Pelo menos, era assim de forma extrema com pessoas mais fracas.
Alguém tão poderoso quanto um Herói ainda sentiria emoções intensas, mas teria muito mais controle sobre o que estava fazendo.
Enquanto isso, a outra pessoa se tornaria uma máquina desinteressada, sem qualquer reação.
Não sentia nada ao ouvir uma piada.
Não sentia nada ao ser criticada.
Não sentia nada quando alguém tentava atacá-la.
Poder-se-ia pensar que isso se assemelhava ao comportamento de um Espectro, mas não era o caso.
Um Espectro queria sobreviver e também causar sofrimento à humanidade.
Enquanto isso, alguém afetado por esse Espectro não tinha nem mesmo esse desejo.
Qual era o sentido de ficar mais forte, afinal?
Qual era o sentido de fazer qualquer coisa?
Nada importava.
A única razão pela qual essas pessoas continuavam falando e agindo era o hábito e a ausência de impulsos como fome, sexo e sono.
Elas meio que simplesmente… continuavam… porque era o que sempre tinham feito.
Naturalmente, esse Espectro era um dos servos da Ira e o futuro governante daquela cidade.
Até amanhã, Serna chamaria os dois Chefes Extratores Zephyx das duas Fabricantes para uma última reunião, e o Espectro faria o mesmo com eles.
Depois disso, o Espectro poderia andar pela cidade sem que nenhum dos Heróis o visse.
Para um Demônio Intermediário, sequestrar alguns Especialistas não era difícil, e o Espectro teria terminado de manipular todos os Especialistas em, no máximo, algumas semanas.
E seria isso.
As pessoas mais fortes estariam sob o controle do Espectro.
Com o tempo, a Caixa Vertigem e a Abismo em Espiral mudariam drasticamente.
A Caixa Vertigem lançaria ataques súbitos e estúpidos contra o pessoal da Abismo em Espiral.
O pessoal da Abismo em Espiral venceria na maioria das vezes, mas nunca conseguiria um golpe decisivo, já que simplesmente não se importavam o suficiente com nada.
A longo prazo, as duas Fabricantes também dividiriam a cidade em duas.
Os dois campos tinham nomes diferentes para se referirem uns aos outros.
Um dos campos se autodenominava os humanos e chamava o outro de máquinas.
O outro campo também se chamava de humanos, mas chamava o outro de animais.
Um deles acreditava que o outro campo carecia de emoções básicas e humanidade.
O outro acreditava que o campo rival não tinha controle emocional, o que os fazia agir como animais selvagens.
Esse era o plano do Espectro para criar conflito na cidade.
Eventualmente, Serna conseguiu convencer Martin a aceitar o armistício.
Os dois Diretores Executivos partiram após um tempo, e Nick saiu de seu compartimento secreto.
O Espectro pareceu desaparecer da sala, deixando apenas um eco de risos e choros.
Quando o Espectro partiu, Serna soltou um suspiro de alívio.
Ela sempre ficava nervosa quando aquele Espectro estava por perto.
Comparado ao Espectro do chocolate, aquele era de fato lúcido e conseguia tomar decisões conscientes.
E mais, parecia bem diferente de Nick, o Espectro com quem ela vinha trabalhando nos últimos dois anos, mais ou menos.
Por algum motivo, trabalhar com Nick era parecido com trabalhar com um superior humano.
Ele realmente explicava as coisas para ela e dizia exatamente o que fazer.
Enquanto isso, esse novo Espectro apenas dizia o que queria e ia embora, deixando Serna decidir como cumprir o que lhe era exigido.
Pelo menos, ela conseguiria uma boa quantidade de Zephyx ao trabalhar com ele.
Além disso, a produção de Zephyx havia aumentado bastante, e o controle da cidade também estava muito mais firme.
As pessoas também estavam bem mais felizes, mas isso não importava muito para ela.
— Quando você vai embora? — perguntou ela a Nick.
— Vou entrar em contato com a Ira em uma semana e receber novas ordens — respondeu Nick, sem se virar para ela.
Serna pensou no novo Espectro e sentiu-se um pouco apreensiva.
— Você não pode ficar? — perguntou ela.
— Não — respondeu Nick. — O outro servo vai comandar esta cidade.
Serna queria dizer mais alguma coisa, mas Nick simplesmente deixou a sala, sem lhe dar oportunidade.
Ele sabia como Serna se sentia, mas tudo o que sentia por ela era desprezo e nojo.
Ela era uma oportunista que não se importava com o sofrimento que causava aos indefesos.
Havia poucas coisas que Nick odiava mais do que isso.
“Você ainda tem de dez a vinte anos”, pensou Nick, com a imagem de Serna em sua mente.
“Depois disso, todo o seu mundo vai desabar.”
Um momento depois, Nick olhou para a cidade.
Ela havia mudado bastante desde sua chegada.
Ele até ouvia sons de risos de vez em quando.
Esses sons não desapareceriam.
No futuro, a cidade estaria dividida em dois campos e viveria em uma constante guerra civil, mas dentro desses dois grupos xenofóbicos, as pessoas ainda se ajudariam.
Na verdade, estariam até mais próximas do que antes, já que ambos os grupos teriam um inimigo em quem concentrar seu ódio.
“Não sei quantas cidades consigo melhorar antes de ter que voltar para a Égide”, pensou Nick. “O importante é que a Égide agora sabe que ainda estou vivo e o que aconteceu comigo.”
Sim, Nick já havia entrado em contato com a Égide, e, na verdade, nem tinha sido difícil.
Quanto a como ele conseguiu isso.
Bem…