— Você é desprezível! — disse Samar entre os dentes cerrados.
— Eu tenho que fazer isso — respondeu Nick. — Isso não é por mim, é pela humanidade.
— Que palavras mais pretensiosas! — cuspiu Samar. — Como tomar uma cidade inteira como refém pode, de alguma forma, estar relacionado com o bem da humanidade?!
— Porque você vale a pena — respondeu Nick.
— O quê? — perguntou Samar com uma careta de choque. Parecia como se alguém tivesse acabado de elogiá-la pelo tamanho dos seios e falado o quanto seria bom tocá-los.
Era repulsivo!
— Aria disse que você não é como Vernon — disse Nick. — Ela sabe qual é o seu objetivo, e mesmo sabendo disso, acredita que você valoriza muito a humanidade.
Samar olhou para Nick com absoluto nojo. — E é por isso que está tomando a cidade inteira como refém?! Para me forçar a cooperar?!
— Sim — respondeu Nick. — Preciso validar a afirmação dela. Preciso ver seu verdadeiro eu.
— Suas habilidades de dedução são aterrorizantes, o que te torna valiosa para a humanidade. Tê-la como aliada da humanidade seria extremamente benéfico.
— A chance de te recrutar supera os riscos impostos à Cidade Carmesim.
Samar bufou. — Você soa exatamente como os pretensiosos da Égide.
— Eles falam sobre o bem da humanidade enquanto deixam as pessoas em suas cidades sofrerem. Estão construindo sua utopia sobre os corpos de incontáveis pessoas indefesas.
— Pelo que Wyntor dizia, você não era assim.
— Wyntor disse que você queria melhorar a vida das pessoas comuns. Disse que não compartilhava dessa ideologia.
— Parece que ele estava errado.
As palavras de Samar doeram.
Pela primeira vez em muito tempo, Nick sentiu a raiva emergir.
Felizmente, como um Espectro, controlar suas emoções era muito mais fácil, pois elas eram mais fracas.
— Pesquise sobre a Cidade Pilar d’Água no banco de dados — disse Nick.
Samar o olhou com as sobrancelhas franzidas, mas decidiu cooperar, por ora.
Ela leu a entrada, que dizia que a Cidade Pilar d’Água havia passado por uma grande mudança alguns anos atrás, e que essa mudança beneficiara imensamente os humanos comuns da cidade.
— E daí? Você ajudou uma cidade e arruinou outra.
— Pesquise sobre a Cidade Claraluz — disse Nick.
Nos minutos seguintes, Nick foi dizendo o nome de cidade após cidade.
Todas, sem exceção, haviam passado por transformações significativas, e essas transformações sempre beneficiavam o povo comum.
Depois da vigésima cidade, a convicção de Samar vacilou.
— Tenho centenas — disse Nick. — Posso ficar te dando nomes por horas, e você verá que são todas iguais.
— Diga outra — disse Samar.
Nick disse.
Depois da quadragésima cidade, Samar acreditou nele.
— Mudei centenas de cidades para melhor. Expus e matei quase cem servos dos Corruptores. Atraí Orgulho para que a Faca pudesse matá-la. Atraí Luxúria para que o Braço Direito pudesse matá-lo. Atraí o Pesquisador Invejoso para que o Campeão da Luz pudesse matá-lo.
— Mudei o destino de milhões de pessoas, e libertei a humanidade de várias amarras que a oprimiam.
— Não fui a arma que matou os Espectros mais poderosos, mas fui quem apontou essas armas.
— Minha fúria através do Grande Triângulo teve tanto impacto que até a Morte começou a prestar atenção às minhas ações.
— Minhas ações estão abalando os Espectros até o âmago.
Samar não pareceu impressionada.
— Pisando nos corpos de inocentes.
— Igual à Égide — disse ela.
— Sim — confirmou Nick. — Sacrifiquei pessoas inocentes. Para cada pessoa que sacrifiquei, fiz uma promessa de melhorar a vida de mil outras.
— Isso é certo? Não. Mas que outra opção eu tenho?
— Não tenho o luxo do tempo.
— Não tenho o luxo de me importar com cada pessoa individualmente.
— Estamos enfrentando um inimigo avassalador!
— Sem sacrifícios, estaremos fadados a sermos alimento dos Espectros para sempre!
— A humanidade precisa ser libertada!
— A humanidade precisa matar o Sol e matar o verdadeiro inimigo!
Os olhos de Samar ainda estavam estreitos. — E quem é esse misterioso verdadeiro inimigo?
— Não posso te dizer. Isso comprometeria toda a operação.
Samar olhou para Nick por um tempo.
— Qual é o seu objetivo?
— Libertar a humanidade do verdadeiro inimigo — disse Nick.
— O que é a Égide para você? — ela perguntou.
— Uma aliada inconsciente. A Égide protege a humanidade. A Égide mantém a humanidade viva. A Égide compra tempo para nós.
— Nosso trabalho é criar a arma que matará o Sol e o verdadeiro inimigo.
— Exceto pelas pessoas que fazem parte da operação, apenas a Braço Esquerdo e o Técnico sabem disso. Nem mesmo o Campeão da Luz ou os outros Escudos sabem da nossa existência.
— Você tem provas? — ela perguntou.
— Tenho as anotações de pesquisa do Técnico aqui — disse Nick.
— Isso não é prova. Todo mundo já recebeu essas — respondeu ela.
— As minhas não são editadas. São as anotações em sua forma mais crua. O único que poderia fornecer isso é o próprio Técnico.
— Me envie — ordenou Samar.
Nick ativou sua Barreira.
— Você não tem espaço suficiente.
Samar franziu o cenho e deletou um monte de arquivos.
— Ainda não é suficiente.
Ela deletou mais, até finalmente receber o arquivo.
Leu os documentos, e lá estavam — muitos devaneios desnecessários e caminhos errados.
Era exatamente assim que as anotações pessoais de um pesquisador se pareciam.
Enquanto a versão editada só continha os dados certos, as notas continham todos os caminhos errados que o Técnico havia seguido em sua jornada.
Era autêntico.
E também cerca de quarenta vezes maior que a versão editada.
Era o conhecimento acumulado de uma pessoa capaz de escrever milhares de palavras por segundo durante mais de um milênio.
Samar ficou em silêncio por um tempo.
— Por que você matou o Wyntor? — perguntou, com a voz calma.
— Ele salvou minha vida, mas também a arruinou.
— Ele não era como o Vernon, mas quando era criança, agia como Vernon.
— Apenas fazia o que aprendeu a fazer.
— Com o tempo, percebeu seus erros e mudou.
— Mas o dano já estava feito.
— A pessoa que mais me feriu neste mundo foi Wyntor.
— Ele era só uma criança que cometeu um erro.
— Mas ele me feriu.
— Eu fiquei com raiva.
— Ele foi responsável pela dor mais profunda que já senti.
— Eu fiquei com raiva.
— Eu também era só uma criança.
— Minha raiva me dominou, e quando tive a oportunidade, o matei.
— Minha opinião sobre a morte de Wyntor é dividida.
— Ele não merecia morrer. Eu não deveria tê-lo matado.
— E ainda assim, a morte dele me trouxe até onde estou hoje.
— Se ele não tivesse morrido, eu seria apenas mais um Extrator na Cidade Carmesim.
— A morte dele me colocou nesse caminho egoísta de redenção.
— Se pudesse, eu o reviveria.
— Mas não mudaria sua morte.
— Ele não merecia morrer…
— Mas sua morte beneficiou toda a humanidade.
— Ele é apenas mais um dos muitos corpos inocentes sobre os quais estou pisando.
— Ele era meu amigo… — disse Nick, com a voz trêmula.
— Me arrependo de tê-lo matado.
— Mas sem seu sacrifício involuntário, a humanidade não teria esperança.
— Minha intenção ao matá-lo foi puramente egoísta. Eu não pensava na humanidade naquela época. Estava apenas com raiva, ressentido e cheio de ódio.
— E ainda assim, a morte dele fez de mim quem eu sou hoje.
— E milhões de pessoas seriam gratas por isso.