Airen observava a cena em silêncio, enquanto o cheiro pútrido de corpos queimados e sangue preenchia o ar.
Ele havia tirado a vida de alguém pela primeira vez. Embora não tivesse matado um humano, não havia diferença, pois os orcs eram seres inteligentes, assim como os humanos. Contudo, ele não se arrependia. Sabia que uma escolha melhor poderia ter sido feita, mas não teve tempo para hesitar. O que precisava fazer era pensar no futuro, para tomar a decisão certa em uma situação semelhante. E também precisava treinar sua esgrima mais arduamente, para evitar o pior cenário de perder para inimigos como aqueles. Esses eram os dois únicos focos de sua atenção.
“O líder dos bandidos não era um mestre, mas parecia tão forte quanto. Isso poderia ter sido perigoso.” Airen pensou no chefe dos bandidos, depois olhou para baixo, onde estava a gata preta em seus braços.
“Lulu é realmente uma gata?”
Ele sabia que o gato havia treinado intensamente para se aprimorar e queria usar uma transmutação para aumentar seu poder. Mas Airen não esperava que a transmutação de Lulu estivesse relacionada a um ‘dragão’. Ele pensou que Lulu se transformaria em outro predador felino ou em uma humana completa. Também achava que Lulu poderia se transformar em um personagem dos livros que lia.
“Talvez tenha algo a ver com o passado da Lulu.”
Ele não podia negar a possibilidade. Lulu havia contado a ele sobre seu passado, mas a adorável feiticeira tinha memórias vagas. Não se lembrava de muita coisa, e até as lembranças que tinha eram nebulosas. Foi então que Lulu despertou de seu sono e abriu os olhos lentamente.
— Airen.
— Sim, Lulu.
— Como fui? Não foi melhor que da última vez?
— Da última vez?
— Você sabe, quando encontramos Ignet, aquela mulher malvada.
— Ah…
Ignet Cresensia. Eles não se encontraram em bons termos, mas ela havia motivado Airen enormemente. Por isso, ele não tinha uma impressão tão ruim dela. Mas Lulu parecia pensar de forma diferente, pois sentiu-se completamente impotente contra ela. Airen ficou ao mesmo tempo triste e feliz ao perceber que a gata tinha aquele incidente em mente desde então. Ele sorriu e acariciou a cabeça de Lulu.
— Sim. Você foi incrível. Foi maravilhosa lá atrás. Obrigado.
— Hehe… Ah, mas estou tão cansada. Isso me deixa exausta… a transmutação…
— Tudo bem. Você pode dormir mais.
— Não precisaremos lutar novamente, certo? Vou dormir mais um pouco. Talvez eu não acorde por alguns dias, então não se preocupe comigo.
— Tudo bem. Descanse.
Lulu assentiu, subiu no ombro de Airen e entrou em sua mochila. Airen sorriu ao sentir seu corpo aquecer com o toque da gata, enquanto Brett se aproximava dele.
— Nós também deveríamos descansar. Um dos soldados de Karakhum veio dizer que partiremos cedo pela manhã — disse Brett.
— Hmm.
Airen olhou para o céu. Ainda estava escuro, mas já era quase junho, então o sol surgiria rapidamente. Era melhor dormir o quanto antes.
— E os mercadores? — perguntou Airen.
— Ninguém se feriu, e alguns dos soldados de Durcali os escoltarão até o destino.
— Isso é bom.
— Sim, não precisamos nos preocupar com eles. Na verdade…
“É conosco que precisamos nos preocupar.”
Airen assentiu após ouvir o que Brett acrescentou. Ele estava certo. Haviam encontrado paz, mas recentemente lutaram contra Karakhum, o melhor guerreiro de Durcali, sob o olhar de muitos orcs. Mas esse não era o único problema. Airen e os outros estavam ali a pedido de Khubaru, algo que certamente deixaria os orcs desconfortáveis.
“Khudbaru era, em termos humanos, o antigo príncipe herdeiro de Durcali, pensou Airen.”
Claro, isso era algo do passado. Karakhum havia abdicado de sua posição como Chefe Tribal, e seu segundo filho, Tarakhan, governava Durcali agora. Houve um conflito entre os apoiadores de Khubaru e Tarakhan no passado, mas isso havia sido resolvido.
“Khudbaru disse que deixou Durcali há dezessete anos…”
Ainda assim, mesmo com Tarakhan estabilizando o trono, era improvável que os orcs recebessem o antigo príncipe herdeiro de braços abertos. Pelo menos, isso era o que acontecia nos reinos humanos. Não era incomum ver um novo rei eliminando familiares ou irmãos com direitos de sucessão. Era possível que encontrassem orcs ainda mais hostis ao chegarem a Durcali. Khubaru sabia muito bem disso. Mas, mesmo assim, ele voltou para casa por uma razão.
“Ele… provavelmente quis arriscar tudo apenas para ver sua família novamente.”
Airen então pensou em sua própria família, no Reino Heyle, seu pai, mãe, Kiril e sua mãe biológica, que já havia falecido. Ele pensou em cada um deles, até cair no sono e acordar algumas horas depois. Ele ainda não sonhava com o homem.
“Eu terei uma resposta para isso quando encontrar o professor de Khubaru…”
Os guerreiros Durcali estavam ocupados se preparando para partir, então Airen também começou a se preparar.
Alguns dias depois, o grupo de Airen chegou com segurança à fortaleza da tribo Durcali. Apesar de se intitularem uma tribo, a fortaleza era tão grande quanto uma metrópole humana. Airen soube que havia mais cinco castelos sob o controle de Durcali nas proximidades, tornando a tribo equivalente a um reino. Nesse sentido, o grupo de Airen estava agora envolvido na política desse reino.
Felizmente, as nobrezas de Illia e Brett os protegiam, pois até mesmo os orcs não podiam ignorar suas origens. Illia, uma nobre do Reino Adan, um dos Cinco Reinos do Oeste, e Brett, da poderosa nação central Gaveirra, tinham grande influência. No entanto, Judith não possuía tal proteção, sendo uma plebeia.
— É tão bom ser nobre, né? — disse ela sarcasticamente.
Mas, claro, ela tinha sua própria influência. Era agora uma aprendiz formal da melhor Academia de Espadachins do continente. Mesmo assim, a presença deles poderia ter provocado alguns dos altos guerreiros de Durcali e a família de Tarakhan, deixando Judith e Airen mais vulneráveis.
“E é com Tarakhan… que realmente devemos nos preocupar, pensou Airen.”
Tarakhan liderava a tribo Durcali. Ele se tornara um guerreiro de nível mestre aos trinta anos, e Khubaru o descreveu como um orc muito gentil e amigável. No entanto, Airen e seus amigos não acreditaram muito nisso, especialmente após o comentário de Brett.
— Ele é famoso por sua crueldade entre os orcs mais durões. Temos que estar preparados para qualquer coisa.
Brett parecia mais convincente que Khubaru. Até Karakhum, o pai deles, era um orc aterrorizante. Se Tarakhan fosse semelhante, Brett provavelmente estava certo. Por isso, os quatro aprendizes ficaram tensos quando Tarakhan os convocou ao cair da noite de sua chegada a Durcali. Contudo, eles não precisavam ter se preocupado.
— Haha, bom ver todos vocês. Sou Tarakhan.
Tarakhan era uma cabeça mais alto que Khubaru, mas sua expressão amigável era muito parecida com a do irmão mais velho. E ele não fez nada estranho. Airen e seus amigos esperavam soldados ferozes cercando-os, mas Tarakhan os aguardava sozinho na sala do trono do rei.
“Não, na verdade, isso não é uma sala do trono.”
O espaço era pequeno e tinha poucas decorações. Apenas uma mesa elegante, taças de vinho para o número exato de convidados, dezenas de bebidas fortes e algumas comidas.
“Dezenas de garrafas de bebida…” Judith ficou sombria.
O que Tarakhan estava pensando ao preparar tanta bebida? Será que ele pretendia beber tudo? Foi então que Tarakhan riu e falou com ela.
— Não se preocupe. Não vou forçar vocês a beber se não quiserem.
— Hã? Ah. Hum… — murmurou Judith.
— Desculpem. Escolhi um lugar assim para que vocês se sentissem à vontade, mas acho que acabou parecendo que estou forçando vocês a beberem. Perdão por isso.
Airen e seus amigos trocaram olhares. Tarakhan os tratava com tanto respeito que era difícil de acreditar. Chegaram até a pensar que o chefe tribal poderia não estar sendo honesto. Mas isso não era verdade. Tarakhan olhou para todos, levantou-se e fez uma reverência.
— Agradeço profundamente por trazerem meu irmão de volta — disse Tarakhan. — Estou falando como irmão dele, não como chefe tribal. Não precisam pensar muito sobre isso.
Ele então ergueu a cabeça, com os olhos ligeiramente marejados. Em seguida, começou a contar histórias sobre ele, seu pai e seu irmão. Khubaru fora o príncipe herdeiro antes do nascimento de Tarakhan. A mãe de Khubaru era a segunda esposa de Karakhum, já que a primeira esposa não conseguiu engravidar e, na época, havia desistido disso. Porém, dez anos após o nascimento de Khubaru, a primeira esposa ficou grávida.
Foi aí que o caos começou. A tribo orc se dividiu em dois lados: um apoiava Khubaru, já declarado príncipe herdeiro apesar de ser filho da segunda esposa, e o outro apoiava o ‘filho legítimo’. Os apoiadores de Tarakhan tinham uma influência política muito poderosa.
A divisão só piorava, e nem mesmo Karakhum conseguia tomar uma decisão com o passar do tempo. Isso fez com que Khubaru escolhesse deixar a tribo e começar a vagar pelo continente como oráculo.
— Foi muito triste — disse Tarakhan.
Khubaru detestava conflitos e não ambicionava muito. Não queria o trono de chefe tribal, que causava disputas entre os irmãos. Assim, quando Tarakhan começou a mostrar talento como guerreiro, Khubaru fingiu que estava obcecado por adivinhação, algo completamente desconectado da sucessão.
Mas, conforme o conflito persistia, Khubaru precisou tomar uma decisão, e Durcali finalmente encontrou a paz. Os apoiadores de Tarakhan ficaram satisfeitos, e até alguns dos apoiadores de Khubaru acharam positivo que uma guerra tivesse sido evitada. Contudo, enquanto a maioria dos orcs aceitou o resultado, os únicos que carregaram a tristeza foram Karakhum, Tarakhan e Khubaru.
— E meu irmão veio me dizer isso hoje — disse Tarakhan. — Ele não se arrepende da escolha que fez naquela época. Fez o que achou melhor no momento. Mas…
Tarakhan fez uma pausa antes de continuar.
— Ele achou que não podia continuar assim agora que adquiriu mais experiência, especialmente porque sentia nossa falta. Disse que não era certo continuar fugindo porque as coisas não estavam indo bem, quando sabia que todos nós, eu, ele e nosso pai, nos amamos. Sim, foi isso que ele disse.
— E também acrescentou que foram vocês que o fizeram tomar essa decisão.
Khubaru não estava ali com eles, mas realmente pensava assim. Brett voltou à academia mesmo após resultados devastadores. Judith também enfrentou dificuldades, mas continuou se levantando e avançando. E Airen nunca perdeu a esperança, independentemente das adversidades, o que ajudou até mesmo Illia a superar seu passado. Depois de ouvir seu irmão, Tarakhan sentiu que devia muito àqueles quatro aprendizes.
— Bem… não posso dizer que tudo ficará bem. Haverá quem fale. Mas não importa. Acho mais divertido buscar um caminho melhor juntos do que ficar afastados por medo.
Depois de terminar, Tarakhan esvaziou uma garrafa inteira de bebida forte. Judith ficou chocada com a cena, enquanto o orc continuava.
— Então, como devo isso a vocês, quero dar um presente a cada um…
Judith, que parecia mais sombria que os outros, animou-se. Embora não fosse muito conhecedora do mundo, podia adivinhar facilmente que o presente de Tarakhan não era algo comum.
A tribo Durcali era a maior entre os orcs. Portanto, se o chefe tribal de uma tribo tão grandiosa oferecia um presente, certamente seria algo significativo. E, para provar esse pensamento, o orc continuou com um olhar confiante, direcionado especialmente para Brett e Judith.
— Na verdade, tenho os itens perfeitos para vocês dois.
— Vamos, então? Ah, vocês também deveriam se empolgar. Sei que não são apenas espadachins comuns, mas o cofre de tesouros do chefe de Durcali é bastante famoso. Vocês vão ver.
Tarakhan então se levantou. Ele havia bebido quase dez garrafas sozinho, mas parecia completamente sóbrio. Para constar, Brett havia bebido o restante, mas também parecia bem.
Mas isso não era o mais importante agora. E enquanto os quatro aprendizes, especialmente Brett e Judith, mostravam-se ansiosos…
— Eu… eu também quero um… — Lulu enfiou a cabeça para fora da mochila de Airen e acrescentou. Tarakhan riu e assentiu com prazer.
— Claro. Você também pode escolher algo para si.